o esquecido…
Sintra deve-lhe tudo. E, como é natural numa terra de gente muito distraída, nenhuma comemoração oficial, cerimónia formal ou encontro mesmo informal, estão programados para o dia de hoje. Telefonei para o gabinete do Senhor Presidente da Câmara e também para a Parques de Sintra Monte da Lua, no sentido de saber se, pelo menos, no Palácio da Pena haveria alguma comemoração. Pois, tanto num como no outro lado, gentis funcionárias tiveram o cuidado de se certificarem para me poderem informar nos termos do que transmito aos leitores.
Parece impossível mas é mesmo assim. O institucional reconhecimento de Sintra a D. Fernando II concretiza-se nesta lastimável mas bem sintomática ausência. Neste caso, ignorar, não marcar a data com sinais inequívocos de gratidão e de homenagem é mesmo um crime de lesa-majestade, deixem-me usar a analogia.
Naturalmente, a pouca preparação cultural dos responsáveis autárquicos, em familiar articulação com a proverbial falta de conhecimentos ou desatenção dos técnicos dos serviços culturais acabam por resultar nestas evidências que fazem a nossa vergonha. Hoje, tenho a certeza, não sou a avis rara que se sente envergonhada pelo desrespeito institucional por quem tanto amou Sintra e a quem Sintra tudo deve. Há amigos com quem já falei que comungam deste desgosto.
Todavia, como sentir qualquer surpresa? É que, na realidade, o gabarito cultural desta gente, coitada, infelizmente muito poucochinha [mas democraticamente eleita, meu Deus, que perversidade!...] não vai muito além de iniciativas do baixíssimo nível como o da tal Sintra Romântica, campanha bacoca que promovem no desconhecimento total do que seja Sintra e movimento romântico que determinado ecletismo e sincretismo cultural suscitaram.
Esquecido? Sim, pelos videirinhos e politiqueiros cá do burgo que, embora vivendo à custa do que D. Fernando investiu, são incapazes de um gesto de mínima nobreza. Mas, aqui, no sintradoavesso, comemora-se a efeméride sem que, para o efeito, tenha de acrescentar ou subtrair seja o que for ao texto que, há três anos, escrevi e publiquei, tanto no saudoso Jornal de Sintra como neste blogue, subordinado ao título D. Fernando II, Pobre artista! Pobre rei! que me permito voltar a propor. Por facilidade de acesso, passo a transcreve-lo.
Transcrição:
D. Fernando II
Pobre artista! Pobre rei!
Há muitos anos que, para mim, o 29 de Outubro é subordinado à memória de Fernando de Sax- Coburg-Gotha (Coburg, 29.101816 - Lisboa, 15.12.1885), um dos homens que mais decisivamente marcou a segunda metade do século dezanove em Portugal, especialmente no âmbito da defesa e recuperação do património.
Muitas são as histórias e os episódios de salvaguarda de peças de valor patrimonial inestimável, in extremis resgatadas ao destino da pura e simples destruição, não fosse a sua directa intervenção. Um verdadeiro diletante, homem informado e de grande cultura, artista ele próprio, grande amante da Música, cantor, pintor de gabarito, tão impressiva foi a marca da sua atitude e actividades que ainda hoje é lembrado sob o epíteto de rei artista.
"(...) Pobre artista! Pobre rei!" É com estas exclamações que Ramalho Ortigão termina o texto subordinado ao título O Rei D. Fernando.* Estas palavras são precedidas por vinte páginas de uma homenagem que, passados que já são cento e vinte um anos sobre a sua escrita, ainda hoje continuam a funcionar como pretexto para que os portugueses melhor se reconheçam, quando lhes dá para o farisaísmo, mesquinhez, ordinarice, inveja, na acabada demonstração da incapacidade de se organizarem à volta dos seus mais autênticos interesses.
Animação da Leitura...
Quem ainda não leu aquelas estupendas linhas de As Farpas e julga conhecer a grande e a pequena História de Sintra, em especial no que se refere ao legado da Pena, não sabe o que tem andado a perder. Ramalho Ortigão escreveu-as, na sequência da morte do Senhor D. Fernando, a quente, reagindo à hipocrisia de uma data de ignorantes que, ao fim e ao cabo, ainda andam por aí. Ou ainda não terão notado? Verão a razão que me assiste quando as lerem.
Uma das maneiras para melhor comemorar a efeméride, não tenho a mínima dúvida, passa pela leitura de texto tão recomendável, que tanto proveito e gozo estético proporcionará a quem seguir o concelho deste humilde escriba que se atreve, não só ao beija-mão real, mas também à evocação de um escritor maior de oitocentos. Nos dias que correm, passe a presunção, não é façanha menor...
...da Música
Mas ainda não vos deixo sem outra recomendação que, aliás é suscitada pela leitura que recomendo: "(...) E, instalando-se num fauteuil, ao fundo da sala de música, [D.Fernando] cantou-lhe ao piano, à mais larga expressão elegíaca da sua extensa voz de baixo cantante, A Criação, de Haydn (...)"
Ouçam essa outra obra-prima. Mesmo que já conheçam a oratória A Criação, não deixem de repetir. Dêem-se ao luxo de participar naquele momento sublime da História da Música que cioincide com a fracção de Tempo em que, no Espaço do caos, a luz se fez. O grande Haydn, introduzido pelo próprio Mozart na Maçonaria, deixa nesta obra o seu mais alto contributo para o brilhante acervo artístico da Augusta Ordem. Ouçam. Repitam.
Ainda vos escreverei que, durante alguns anos de luto, pelo que estava a acontecer no Parque da Pena, especialmente sob a desastrada administração do biólogo Serra Lopes, pedia eu a Brahms que com o seu Ein Deutsches Requiem me acompanhasse na celebração da efeméride fernandina. Como sabem, trata-se de um Requiem profano, já que não segue o cânone cristão. Mas raramente, música e textos, do Antigo e Novo Testamentos, traduzidos por Lutero, tão bem encontraram um caminho comum para celebrar a Morte das coisas e
das pessoas.
...e da Arte, em geral
Mas, por favor, nada de misturas. Em primeiro lugar, leiam. Depois, escutem as músicas. Não façam como tanta e tão boa gente, que afirma precisar da Música como fundo para a concretização de outras actividades culturais, como a leitura da Literatura, por exemplo. Se querem saber, eu sou completamente contra. É que tanto a Literatura como a Música são tão exigentes de concentração, que o leitor-simultaneamente-ouvinte, mesmo de obras literárias e musicasis afins, com certeza, perderá inúmeros aspectos de uma e outra obras de Arte.
Hoje, em memória de um pobre rei, em memória de um pobre artista, saibamos conceder-nos o benefício da Arte e, muito a propósito, lembremos o horaciano carpe diem que, ao contrário do que alguns consideram bem interpretar, nada tem de aconselhamento à facilidade. E facilidade foi coisa que D. Fernando jamais promoveu embora tivesse sabido muito bem aproveitar os dias da sua passagem por aqui.
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(*)Ramalho Ortigão, José Duarte, O Rei D. Fernando, in As Farpas, Obras Completas de Ramalho Ortigão, tomo III, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1969