Espírito do lugar?
Não, espírito mercantilista...
“(…) E a passo, o breck foi penetrando sob as árvores do Ramalhão. Com a paz das grandes sombras envolvia-os pouco a pouco uma lenta e embaladora sussuração de ramagens e como o difuso e vago murmúrio de águas correntes. Os muros estavam cobertos de heras e de musgos: através da folhagem, faiscavam longas flechas de sol. Um ar subtil e aveludado circulava, rescendendo às verduras novas; aqui e além, nos ramos mais sombrios, pássaros chilreavam de leve; e naquele simples bocado de estrada, todo salpicado de manchas do sol, sentia-se já, sem se ver, a religiosa solenidade dos espessos arvoredos, a frescura distante das nascentes vivas, a tristeza que cai das penedias e o repouso fidalgo das quintas de Verão… (…)”
(Os Maias)
Quando se fala ou escreve acerca do espírito do lugar – coisa tão compósita e quase indefinível – o que se tem em consideração é algo que coincide com alguns dos parâmetros afins desta descrição. De facto, o que se pretende significar com aquela expressão, passa pela referência às linhas de força do local, num entretecer de conotações que o ambiente e a cena suscitam ao observador.
No caso em apreço, estamos no Ramalhão. Trata-se de lugar com um espírito que, pela sua pena de homem de Arte, Eça nos traça através de uma mensagem de Arte inolvidável, como que escrevendo lapidarmente e para a posteridade, o que deveríamos ver e sentir sempre que fôssemos desafiados pelo mesmo estímulo do Ramalhão.
Deveríamos. Pois é, no condicional. Na realidade, uma única condição se impunha para que pudéssemos continuar beneficiando da descrição do artista, ou seja, que o espírito do lugar tivesse sido respeitado. Ora bem, tal como à saciedade pode verificar quem se interne em Sintra através do Ramalhão, isso não acontece e, aliás, há muito tempo deixou de acontecer.
Entre outros factores de abastardamento do espírito daquele lugar, avulta numerosa série de cartazes publicitários. Se ali estão implantadas aquelas mensagens promotoras da venda de bens e serviços, elas foram autorizadas pela Câmara Municipal de Sintra. Entretanto, os mesmos autarcas que, deste modo tão contundente, se permitem aviltar o espírito do lugar que o Ramalhão encerra, são os mesmos que promovem a despudorada e bacoca campanha publicitária Sintra, capital do romantismo…
Perdoai-lhes, Senhor, que desconhecem o que seja o espírito do lugar! Por outro lado, julgam saber mas, como flagrantemente se demonstra por toda a nossa querida e tão descuidada Sintra, estão redondamente enganados quanto ao seu conceito romantismo. Se o percebessem cabalmente, saberiam que se conjuga com preocupações de defesa do património natural e edificado, nos termos da qual, o espírito do lugar é, precisamente, o primeiro princípio considerado e inequivocamente respeitado.
E tais preocupações, vemo-las fielmente atendidas em enquadramentos europeus, de algum modo, similares aos que a ideia de Paisagem Cultural acolheu em Sintra. Vemo-las bem patentes, na Escócia, na Alemanha, na Áustria, na República Checa, por exemplo, só para citar países onde abundam, devidamente trabalhados, muitos contextos afins de ambientes soit disant «românticos», sem que se arroguem no direito de promover atitudes de venda turística análogas às da lusa, provinciana e doméstica capital do romantismo.
Ultimamente, o despudor tem atingido contornos inimagináveis. Sintra vende-se. Como qualquer sabonete ou detergente. Dizem os autarcas que o seu objectivo é venderem-na romântica, como marca. Vendem-na à mistura com a Sintra Inn. Vendem-na, besuntada na chapa duma carripana ordinária, junto à igreja de São Martinho, à mistura com um ask me, em imperativo anglófono que parece esconder a vergonha de uma língua que são capazes de confessar ser a sua pátria…
Aqui nem sequer há gato escondido. Como poderão verificar, o cartaz do motel encerra toda a baixeza da mensagem que a autarquia autoriza seja transmitida, bem às claras e sem margem para dúvida. Sintra romântica, para eles, é isto: a pressa de uns amores, num motel periférico. Em tempo mais seco, já se sabe, para além do motel, também o amor e a cabana numa qualquer autocaravana, em pleno coração de Sintra, isto é, o parque de estacionamento do Rio do Porto.
Toca a vender!…
A terminar um ano, em que a rapaziada da autarquia responsável pelo turismo se limitou a fazer mais do mesmo, peço encarecidamente que não insistam em brincar com coisas sérias. Romantismo? Espírito do lugar? Não, decididamente, é um mundo que não está ao seu alcance.
Finalmente, deixar-lhes-ia uma mensagem de caris mercantil: É vender, rapaziada, é vender!... Vendam o que sabem, vendam gato por lebre! Vendam o que a ignorância compra! Continuem a pôr na rua o produto da vossa fábrica de enganos. Um dia virá em que rirá melhor quem rir, por fim, e em que serão confrontados com a mercadoria acumulada de tanta fancaria ordinária…
Agora atentem nas fotos e articulem-nas com a citação de "Os Maias". Mais palavras? Para quê?...