[sempre de acordo com a antiga ortografia]

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Exposição em Sintra
Café Saudade





Trapos com Vida
- alquimia de uma Arte

Em pleno coração de Sintra, a poucos metros da estação da CP e dos Paços do Concelho, o Café Saudade – que, em tão pouco tempo, adquiriu justo e merecido estatuto de interessante pólo cultural – vai acolher e inaugurar, no próximo dia 2 de Março, uma exposição de Ana D’ Oliveira à qual a própria artista atribuiu a designação
Trapos com Vida.


Os meus leitores mais fiéis hão-de lembrar-se que, estava e estaria eu ainda em Salzburg, quando fui desassossegado pelo anúncio desta iniciativa cultural. Quase a três mil quilómetros de distância, não tive qualquer hesitação em divulgar aquela que, mesmo a nível nacional, me parece poder constituir um dos primeiros manifestos públicos de Textile Art & Mixed Media.

É um conceito que vem ganhando um lugar cada vez mais cativante e destacado nas propostas das galerias mais atentas aos avanços de certas vertentes das Artes Plásticas. No caso da Textile Art, ela vai-se servindo de suportes de aplicação tão habituais ou mais inusitados quanto o ditar o engenho e a arte de quem se propõe desafiar-nos com peças que, no caso de Ana D’Oliveira, adivinho sejam tão interessantes como as que me surpreenderam numa sua exposição, em St Helier, na ilha de Jersey.

É daquela ilha do Canal da Mancha que conheço a sua originalidade. Depois de ter passado muitos anos no Reino Unido, não perderam os seus trabalhos os acentuados laivos da nossa meridional e proverbial nostalgia, contudo, ganhando os seus rostos uma altivez sofisticada e muito british. Preparem-se para as sedas, de Veneza e da Córsega, para os acetinados, brocados e arrendados e outras texturas metamorfoseadas que preguearam, mirraram ou expandiram, depois de passarem por tormentos de muitos graus de temperatura aplicada por mão de iniciada alquimista.

Se me dou a esta tentativa de descrição que, em boa verdade, ninguém me encomendou, claro que não é na mira de ser contemplado com descontos no valor de alguma peça que me venha a interessar… Faço-o, isso sim, por respeito à específica linguagem de uma Arte que, em Portugal, ainda não foi objecto da devida e merecida destrinça.


Estou em crer que, à minha modesta medida, poderei alertar no sentido de que nada disto se confunda com qualquer linguagem de artesanato urbano – e, atenção, muito menos, com qualquer relação com trapos desqualificados ou menos dignos e nobres, interpretação para a qual uma leitura menos conveniente do título da exposição poderia remeter – que, cumpre esclarecer, tem o seu lugar noutra plataforma.

Ocorre-me cruzar estas palavras com o «produto têxtil» de episódios de outras Artes. Lembram-se de Penélope, que tecia de dia e desmanchava durante a noite? E de Alberich, na terceira cena de O Ouro do Reno, explicando como o Tarnhelm, o elmo dourado, carregado de feitiço, era capaz de transformar alguém num sapo irremediavelmente capturável na mais propícia armadilha? Ou no tecido diáfano, etéreo, sensual dos véus de uma perturbada Salomé… Enfim, talvez Ana D’Oliveira queira aproveitar alguma destas sugestões musicais para enquadramento áudio…

Trapos com Vida é inaugurada, repito, no dia 2 de Março. Espero que, além do sucesso que Ana D’ Oliveira merece seja reconhecido, lá nos possamos encontrar. Provavelmente, será de queijada na mão e, oxalá, também com algum precioso líquido regional condicente… Ah, é verdade, a propósito de água – o quê, julgavam que estava a candidatar-me a um copo de Collares? – ah como eu também espero, e tanto peço a São Pedro, que chova, que chova muito, sem parar! Tão bom seria ter a festa regada!




segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012


Efeméride mozartiana


Em 26 de Fevereiro de 1788, Mozart dirige a Cantata "Ressurreição e Ascenção de Cristo” de Carl Philipp Emanuel Bach, no palácio do Conde Johann Esterházy, em Viena. Ainda criança, Mozart conheceu C.P.E. Bach, ((8.3.171...4-14.12.1788) em Londres, por ele nutrindo o maior apreço ao longo da vida.

Esta efeméride assinala uma prova dessa alta consideração por um compositor que morreu naquele ano de 1788, altura em que suscitaria a Amadé o mais rasgado elogio. Eis um excerto da peça que é do mais sofisticado timbre do período clássico. Boa audição!


http://youtu.be/mM-CO0G89cM
CPE BACH - Die Auferstehung und Himmelfahrt Jesu ( Extraits )
youtu.be

sábado, 25 de fevereiro de 2012



Colares, 24 de Fevereiro


Ontem à tarde, em Colares, consegui ser tão desastrado no estacionamento do meu carro que incorri numa situação de indiscritível incorrecção. Poderia invocar atenuantes, mas para quê se, em efectivo resultado da minha atitude, o condutor de uma camioneta viu interrompida a possibilidade de continuar o seu trabalho? Não só aquele cidadão mas, de várias formas, também outras pessoas foram incomodadas.

Suponham que, em vez da viatura referida, era uma ambulância ou um carro de bombeiros, que poderia estar em perigo a vida de alguém… Não, não há palavras para vos descrever o estado em que fiquei e ainda estou. Tão cuidadoso costumo ser, tão prestes a recriminar quem protagoniza comportamento que tal e, afinal, acabei por me envolver num episódio de descuido para o qual não há desculpa possível. Por isso, aqui me têm, envergonhado, absolutamente embaraçado. Apenas espero poder continuar a encarar-vos de frente.


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012


Mozartwoche 2013
- Wagner em Salzburg


Há uns dias, quando regressei de Salzburg, já tinha resolvido a questão da encomenda dos bilhetes de 2013. Isto mesmo, que todos os anos se repete, apenas é possível porque a eficiente organização – que já conta com a experiência acumulada de cinquenta e seis edições do mais alto gabarito – ao programar com dois, três e, por vezes, quatro anos de antecedência, consegue disponibilizar toda a documentação, neste caso, referente à Mozartwoche 2013, precisamente um ano antes da realização do primeiro evento do festival de 2012…

Portanto, neste momento, sem dificuldade de qualquer natureza, já tenho a cabeça totalmente arrumada em relação ao que me espera, quer ao nível dos custos quer relativamente ao programa das três dezenas de eventos. Aliás, só com base no modelo de trabalho a que me reporto, é possível assegurar a proverbial alta qualidade de todos os grandes festivais que frequento. Entre nós, só no Arquipélago da Cultura que é a Fundação Calouste Gulbenkian temos sistema coincidente.

Permitam que aborde dois casos, portanto, relativos à futura edição da Mozartwoche. Quanto ao primeiro, não deixa de ser curioso que o único evento a destoar do fascinante ramalhete do próximo ano, seja o de um dos quatro concertos com a Orquestra Filarmónica de Viena, exactamente no dia 26 de Janeiro, pelas 19,30, no Grosses Festspielhaus, em que Maria João Pires será a solista de serviço, tocando o Concerto KV 466 de Mozart, sob a direcção de Gustavo Dudamel. Como adivinho a vossa reacção, melhor será avisar não ser caso para já quererem saber onde é o meu caixote do lixo…

Claro que não passa de opinião muito pessoal e explica-se rapidamente. É que, da estirpe de MJP, pelo menos, há uns cinquenta e sete pianistas – que, lá por tocarem em Salzburg, não acrescentam nada de especialmente assinalável à pianística dos nossos dias – acerca dos quais a História da Música nada registará. Quanto a GD, na realidade, não aprecio aquela perfeitamente evitável exuberância. Faz parte de um fogacho de maestros cujas leituras das peças que dirigem também nada de novo trouxeram à interpretação das mesmas.

A propósito, o gabarito de qualquer maestro não se mede pela exuberância da linguagem gestual, no momento do concerto, que o público não conhecedor considera ser muito importante mas, isso sim, pelo trabalho de bastidores, nos ensaios, onde revela a sua capacidade de liderança, demonstrando se tem originalidade e se sabe solicitar aos músicos aquilo que eles até poderão dar se forem devidamente motivados.

Ou seja, como estou habituado ao excepcional, dispenso perfeitamente o trivial… Em relação ao segundo caso, pois desde já poderei garantir que nada de trivial acontecerá. Na realidade, um concerto com Les Musiciens du Louvre-Grenoble, pois é disso que se trata, dirigido por Marc Minkowski será sempre um acontecimento excepcional. Tal como no exemplo anterior, não descerei ao pormenor do programa senão para confirmar a raridade da abordagem de uma das peças.

Trata-se da Sinfonia em Dó Maior WWV 29, de Richard Wagner, obra de juventude, composta aos dezanove anos, que os wagnerianos conhecem, mas ignorada pela maior parte do público que frequenta as salas de concerto, quanto mais não seja, também porque é rarissimamente interpretada. Não vamos afirmar que se trata de uma obra prima. No entanto, está longe de se justificar ter sido tão votada ao esquecimento, aliás como a sua outra sinfonia em Mi Maior.

Como decidi proporcionar-vos a sua audição, hão-de reparar como é notória uma certa influência de Beethoven e, em particular da Sétima Sinfonia. De qualquer modo, reparem como já se vislumbram certas soluções que prenunciam uma oficina, de facto, muito mais vocacionada para outros domínios musicais, em especial, o da ópera em que Wagner pontificou como um dos mais sérios casos da nossa cultura.

Aí tendes, um bom registo do primeiro andamento, Sostenuto e maestoso, Allegro con brio, na leitura do maestro Heinz Rögner, à frente da Orquestra Sinfónica da Rádio Berlin.

Como não consegui uma gravação sem imagens, fica a advertência para que não se distraiam com os retratos de Wagner. Como adivinho que a maior parte dos leitores nunca terá ouvido esta obra, há mesmo que ter a noção de se tratar de um momento raro.


Boa audição!

http://youtu.be/nAvhVNfMf60

domingo, 19 de fevereiro de 2012




CARTA ABERTA
À COMANDANTE DA PM DE SINTRA


Exma. Senhora
Comissária Nery Correia,
Digmª Comandante da Polícia Municipal de Sintra


Sintra, 19 de Fevereiro de 2012

Assunto:
estacionamento irregular de viaturas na
Estefânea (Freguesia de Stª Maria e S. Miguel)


Senhora Comissária,


Resolvi dirigir a V. Exa. uma carta aberta, não só no sentido de que os meus concidadãos tomem conhecimento de um assunto em que, para além de mim próprio e de V. Exa., também muitos deles estão envolvidos. Naturalmente, faço-o na presunção de que o conhecimento geral constitua elemento de vantagem para apreciação ponderada e, inclusive, eventual resolução do assunto.

Embora, infelizmente, não faltem outras zonas do mesmo bairro, onde ocorrem situações congéneres, apenas pretendo reportar-me ao que sucede junto ao Centro Cultural Olga Cadaval e igreja paroquial de São Miguel, em especial, no segmento da Rua Câmara Pestana com trânsito nos dois sentidos, entre a Heliodoro Salgado e o acesso ao Bairro das Flores onde, muito naturalmente, o estacionamento é proibidíssimo.

Os prevaricadores «só» vão, mesmo ali, à Conservatória do Registo Predial. Ou ao mercado, num instantinho. Ali, pagar uma conta à EDP. Ali, aos bancos. Ali, aos chineses. Ao Centro de Emprego. À Segurança Social. Pois, muito naturalmente, num bairro de Serviços… Um instantinho? Talvez, muito raramente. No entanto, há quem estacione durante longas horas e, inclusive, utilize a via como garagem, durante dias inteiros. Autêntico, Senhora Comissária!

Um pouco mais à frente, passado o prédio onde está instalada a Conservatória, todo o lado esquerdo da mesma rua é zona de estacionamento pago. Quantas e quantas vezes tenho eu assistido à caricata situação de funcionários da EMES autuarem condutores que se demoraram nos seus afazeres, ultrapassando o período de estacionamento constante do bilhete que liquidaram no parquímetro, enquanto que, a duas ou três dezenas de metros, os espertalhões gozam o prato da impunidade oferecido pela autoridade policial…


Outro é o caso da Rua Adriano José Coelho, entre a garagem da EMES e a Praça Dr. Francisco Sá Carneiro, no sentido ascendente, onde também é proibido estacionar. Aí, depois de solicitação nesse sentido, o pavimento até está bem marcado com linha amarela, paralela ao passeio. Cumpre recordar que, há uns poucos meses, no âmbito de campanha em que até parecia estarmos num país civilizado, a PM de Sintra, bloqueou, multou e manteve uma atitude perfeitamente à altura das circunstâncias.

Porém, o que terá sucedido para que, agora, se tenha voltado à maior selvajaria, em especial nas horas dos serviços religiosos, durante os quais – aliás, em atitude muito pouco católica… – os crentes deixam os seus automóveis ao Deus dará, em cima do próprio passeio, em cima da risca amarela, no maior desrespeito pelo Código e sem que a autoridade intervenha a repor a legalidade?

E quanto ao escândalo máximo, por ocasião de espectáculos no Centro Cultural, de dia ou de noite, em dias úteis ou em fim de semana? Nessas alturas a coisa é tão grave que chega mesmo ao limite a partir do qual está em risco a segurança de pessoas e bens. E isto tanto assim é que poderia ilustrar com vários episódios, como o da família com um filho asmático, há anos forçada a ir residir noutra zona, depois de, em duas ocasiões de perfeito SOS, não conseguir sair em busca de socorro para a criança por atravancamento da porta da sua garagem no Bairro das Flores.

Frequentemente, vejo passar patrulhas da PM que, evidentemente, se apercebem da situação. Olham, passam, certamente a caminho de outras missões, e tudo permanece inalterado. Constituídas por agentes que, em nome dos cidadãos, foram formados para o exercício da autoridade, estas patrulhas que ordens receberão afins da manutenção de um estado de coisas que, de modo algum, convém aos mesmos cidadãos?

Certamente, ninguém lhes ordenará que fechem os olhos à prevaricação. Sem dúvida, nenhum superior hierárquico lhes pedirá que sejam tolerantes. Porque a designada tolerância perante uma atitude de desrespeito pela Lei vigente, colide com o interesse da comunidade. Bem podem as famílias e o Sistema Educativo – se e quando o fazem… – junto das crianças e jovens, promover atitudes afins do respeito pela intervenção da autoridade cívica se, na prática, tal autoridade assim for pervertida…

Ao voltar a colocar esta questão, ao contrário do que, lamentavelmente, já me aconteceu, espero bem não ser interpretado como estando, eu próprio, faltando ao respeito que, inequivocamente, a autoridade me merece. E, como nota final, a convicção de que nada de definitivo poderá ser feito enquanto a Câmara Municipal de Sintra não atacar a questão de acordo com os diagnósticos e soluções mais que conhecidas, como a dos parques periféricos em articulação com transportes públicos.

Entretanto, Senhora Comissária, que poderá V. Exa, fazer e mandar fazer senão honrar a sua própria atitude quando deu instruções inequívocas para bloquear, rebocar as viaturas e autuar os prevaricadores? Nestes termos, Senhora Comissária, a única e possível tolerância é a tolerância zero. É que, permita-me V. Exa. acrescentar, sem ponta de ironia, até parece que a Lei não se aplica aos cidadãos que só vão ali num instantinho, aos que assistem aos serviços religiosos e aos espectadores dos eventos do Centro Cultural…

Quanto mais tarde a CMS actuar, mais se impõe não transigir com os prevaricadores. Ou seja, o facto de não estar resolvida a questão não significa que a própria autoridade policial abra a porta à prevaricação. Está em perigo, continua todos os dias em perigo a segurança de pessoas e bens. O que mais é preciso para que a actuação da polícia seja consentânea com este estado de coisas? Basta de porreirismo! Compare-se o luso nacional porreirismo com a intransigência das autoridades policiais espanhola, francesa, alemã ou austríaca e veja-se o que vamos obtendo como resultado da nossa estratégia de tolerância…

Finalmente, antes de me subscrever, gostaria de reafirmar, com a maior veemência, que apenas me move o propósito de ver respeitada a Lei do meu país, sem tibiezas, e, muito menos, no quadro de uma qualquer e perversa tolerância, tão perniciosa que fere os mais elementares princípios do exercício da autoridade democrática, cuja exigência por parte dos cidadãos é absolutamente natural, também em contrapartida pelos impostos que liquidam. Trata-se, Senhora Comissária, de uma dupla questão de civilidade e de cultura social.

Antecipadamente grato pela atenção que V. Exa. puder dispensar, apresento os meus cumprimentos e manifesto da maior estima e consideração,

João de Oliveira Cachado



[C/c ao Exmo Senhor Presidente da Câmara Municipal de Sintra]






segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012



Salzburg, 4 de Fevereiro
Mozartwoche, 2012

Grosses Festspielhaus, 19,30
Orquestra Filarmónica de Viena,
Daniel Barenboim, maestro e pianista

Outro concerto com a Filarmónica de Viena, desta vez sob a direcção de Daniel Barenboim que, em função de distintas mas convergentes razões, se evidenciou como uma das mais influentes e mediáticas personalidades deste tão singular mundo da música erudita. Acompanho a sua carreira, desde princípios da década de setenta, quando já era um pianista de renome e, em especial, nessa condição, assisti a muitos dos seus recitais e concertos, por exemplo, no Festival de Luzern.

A partir de determinada altura, entre meados dos anos setenta e fins dos oitenta, passou a ser muito mais como maestro que o fui encontrando. Particularmente bem impressionado, me lembro de ter aplaudido a sua direcção da Orquestra do Festival de Bayreuth, em 1987, com um Parsifal ainda hoje memorável, da produção de Götz Friedrich.

Para sua fama e proveito, as orquestras Sinfónicas de Paris, Chicago, do Teatro Alla Scalla de Milão têm-no tido como maestro titular. Muito empenhado no projecto de aproximação de árabes e judeus, deve-se-lhe, juntamente com Eduard Said, a formação da West-Eastern Divan Orchestra, constituída por jovens músicos de ambos os lados em confronto.

Sem entrar em pormenores da biografia deste galáctico, não deixa de ser interessante referir que, desde muito novo, ficou ligado a Portugal por ter beneficiado do patrocínio da Senhora Marquesa de Cadaval, em cuja Quinta da Piedade, em Colares, namorou com aquela que se tornaria sua primeira mulher, a malograda Jacqueline Dupré, excepcional violoncelista.

A sua ligação a Salzburg, cidade onde estudou desde idade muito precoce, é permanente, nos vários festivais, desde a Mozartwoche ao Festival da Páscoa ou ao de Verão. Tenho memórias belíssimas de algumas das suas intervenções e devo dizer que, durante muito tempo, experimentava a boa expectativa de o rever e, sempre com imenso gosto, presenciei as suas prestações quer como maestro quer como solista.

No entanto, de há alguns anos a esta parte, talvez porque diversificou de tal modo as suas actividades que passou a faltar-lhe o tempo bastante para a preparação das peças que se compromete como pianista. Isto mesmo tenho observado e dado conta em alguns textos que vou publicando, impressão que nunca foi ao ponto de afirmar que, ao interpretar determinada sonata de Beethoven, parecia que estava a tocar máquina de costura, expressão que numa certa noite de Lisboa, à saída da Gulbenkian, ouvi da boca de alguém que sabe da poda…

Desta vez, na Mozartwoche, ao interpretar o Concerto em Ré Maior KV 537, o famoso Krönungskonzert (Concerto da Coroação) que, igualmente, dirigiu não poderá dizer-se que não tivesse estado até bastante bem. Percebe-se perfeitamente tratar-se de peça que conhece de trás para diante. Mas não transpareceu nada de particularmente substancial como, por exemplo, acontece na gravação que vos proponho, com Frierich Gulda, também como solista e maestro da Orquestra Filarmónica de Munique, em que Mozart lá está em todas as dimensões.

Então Barenboim não está a conseguir dar ao público esse Mozart total? Pois, se calhar não. É que a mesma sensação de falta de empenho aconteceu com o outro Concerto para piano, o KV 491, do mesmo compositor, que ainda interpretou na segunda parte. Tudo muito certo, as notas todas, a orquestra impecável mas o Mozart a que temos direito, esse que tivemos a rodos, com Mitsuko Uchida, com Radu Lupu, com Robert Levin, esse não morou por ali, naquela noite no Grosses Festspielhaus.

Para o fim deixo referência à peça que maior contentamento me proporcionou. Nessa, apenas enquanto maestro, Barenboim apresentou o resultado de um estupendo trabalho de preparação da Kammersymphonie für fünfzehn Soloinstrumente op. 9 de Arnold Schönberg. Tal como indica a designação, a obra destina-se a quinze instrumentos solo (oito sopros de madeira, duas trompas, quarteto de cordas e contrabaixo), com explícitas referências a Richard Strauss, Mahler e Wagner, obra muito compósita, com constantes mudanças de tempo, música do futuro em que cada instrumento é um solista virtuoso, fazendo-se ouvir em texturas caleidoscópicas de extrema sofisticação.

Peça de dificílima execução e não menos exigente direcção, como já terei dado a entender, constituiu o momento em que mais Arte e Beleza ali se viveu, em que os solistas da Filarmónica de Viena demonstraram como, de facto, são dos melhores do mundo e, naquele caso, em simbiose e perfeita cumplicidade com o maestro. Pudesse Barenboim estar sempre a este nível…

À laia de sociológica divagação...

Mas não fiquem pensando, por estarmos em Salzburg, que, através do aplauso, o público sabe distinguir estes matizes que vou tentando transmitir-vos. Terei de confessar-vos, com alguma tristeza que assim não é. Aliás, como em todos os auditórios que frequento, há uma pequena parte de público verdadeiramente conhecedor e uma massa, mais ou menos homogénea, para quem os dois referidos concertos para piano e orquestra de Mozart, foram extraordinariamente bem tocados porque foram tocados pelo Barenboim…

Para quatro quintos das cerca de duas mil e duzentas pessoas ali presentes, aquela figura mediática de maestro e pianista que tiveram oportunidade de ver e ouvir, foi apenas mais uma estrela cujo fraseado e touché são incapazes de destrinçar do de outro pianista… É verdade. E é tão verdade em Salzburg como em Lisboa, na Gulbenkian. Por exemplo, querem saber do que me apercebi, durante uns minutos que antecederam o início deste concerto no Grosses Festspielhaus, mesmo na fila à minha frente?

Ora bem, muito formal, o noivo de uma menina, igualmente muito formal, tinha convidado para o evento os pais da ‘piquena’, igualmente muito embiocados, que nunca ali tinham entrado, dando bem a entender que, de facto, aquele não era o seu ambiente. Mas, tudo bem, apenas estou a passar-vos a cena de um episódio muito frequente, cujo enquadramento sociológico não deixa de ser interessante.

Tal como, aqui em Sintra – quando, por altura do Festival, os patrocinadores oferecem bilhetes aos seus empregados e eles, coitados, muito formais, lá trazem as mulheres, que foram de propósito ao cabeleireiro e vestem o melhor fatinho porque o concerto é assim coisa a atirar para o chique… - acontecera que o rapaz, com os bilhetes oferecidos pela empresa, aproveitou a oportunidade para demonstrar à futura família como tinha acesso a uma coisa destas, sempre entendida como prestigiante.

Naturalmente, tais pessoas aplaudem freneticamente, mesmo que o solista tenha feito qualquer disparate mais evidente. E, quem sabe alguma coisinha, o melhor que tem a fazer é, quanto muito, observar, não deixando de enriquecer o seu palmarés de experiências nos auditórios, não se impressionando por aí além pois, caso contrário, acabaria por cair na atitude de certos apreciadores [até que ponto serão melómanos é algo difícil de expressar] que, por causa destas e doutras misturas, não frequentam as salas de concerto. Também não é caso para isso…


Então, a gravação acima referida. Boa audição!

ttp://youtu.be/3stLTO64ADs
Mozart concerto 26 (Coronation) - 1. Allegro (1/2) (Gulda)


Salzburg, 1 de Fevereiro
Mozartwoche, 2012

Grosses Festspielhaus,
19,30 Orquestra Filarmónica de Viena,
Maestro Ivan Fischer,
Radu Lupu, pianista

O segundo dos quatro concertos da Orquestra Filarmónica de Viena durante a Mozartwoche, desta vez exclusivamente dedicado a obras de Mozart, contou com leituras absolutamente canónicas de peças subordinadas à mesma tonalidade, sempre em Ré Maior, a Serenata KV 239, Serenata Nocturna e Sinfonia KV 504, Praga, além da breve Marcha KV 335. Apenas comentarei a outra peça que não faz parte deste conjunto.

A única obra em presença divergente no tom foi o Concerto em Si Maior para Piano e Orquestra, KV 595, datado de Viena, aos 5 de Janeiro de 1791, o último dos vinte e sete concertos para este instrumento, neste ano em que o compositor acabaria por falecer tão precocemente. Como solista, no seu estilo tão peculiar e eficacíssimo, um Radu Lupu, com mais de quarenta anos de carreira brilhante, cada vez mais sábio, sóbrio, em primorosa articulação com uma orquestra que bem conhece.

Foi um Radu Lupu igual a si próprio, sempre com aquela atitude aparentemente distante e que, estou em crer, apenas corresponde a um mecanismo de defesa pessoal, evidente na necessidade de não dispersar emoções. Tudo quanto nele possa ser do domínio do não racional se concentra na relação com o compositor, no intermédio de serviço à obra, sem gestos supérfluos, sem qualquer nota de intimidade com o público na sala. O resultado da sua arte, no máximo respeito pela obra, a sua singular interpretação, esses sim, os ingredientes que mais lhe interessam sejam acolhidos pelo público presente.

E o público presente, pelo menos o mais conhecedor, soube como reconhecer a superior capacidade do pianista romeno de devolver uma estética mozartiana que, tão difícil e estranhamente se revela, nos seus contornos tão desafiantes, como neste concerto em que, longe de adivinhar que seria final, o compositor apresenta uma proposta de serenidade, tão definitiva, que não há comentador que não ceda à tentação de o considerar na acepção de testamento pianístico.

[Dois parágrafos finais a pensar no Prof. Fernando Seara e no Dr. João trindade Duro]


Numa noite muito fria, rondando os treze graus negativos, saí do Grosses Festspielhaus para casa, o mais rapidamente possível, já que não tinha qualquer encontro marcado com amigos ou conhecidos. O caminho mais directo é o que sempre me leva a passar pela rua que, tão acertadamente, foi baptizada com o nome de Wiener Philharmoniker, em homenagem a esta fabulosa orquestra à qual Salzburg tanto deve.

Apesar da baixa temperatura, ao chegar à Universitätsplatz - que, à noite, é um dos meus lugares fétiche - não resisto a parar, olhando a formidável mole barroca da fachada da Kollegienkirche de Fischer von Erlach. Por um lado, não resisto e, por outro, não consigo deixar de articular esta força estética com o privilégio que tinha acabado de viver, já que faz parte de um todo coerente, qual seja o do supremo privilégio da vida, do usufruto da Arte, da partilha de uma cultura que um europeu tanto pode orgulhar-se.

Finalmente, como ilustração, um excerto do Allegro do KV 595, com uma leitura igualmente muito fiel de Friedrich Gulda, o grande pianista já falecido há uns bons anos, tão frequente em Salzburg, que tantas vezes 'me levou' até Amadé...

Boa audição!

http://youtu.be/4Y-AiesUhrk
Mozart K.595 Piano Concerto #27 in B-flat 1st mov. Allegro : Part 1


Últimas de Salzburg

Nestes últimos dias, andei numa tal roda-viva que, sinceramente, não tive qualquer hipótese de escrever outros textos acerca dos concertos que, como sempre acontece na Mozartwoche, sucedem em catadupa, de manhã, à tarde e à noite. Ora bem, se tiverem em consideração que tenho de comer e de dormir e, ainda, de aproveitar os intervalos dos eventos para alguma investigação e tro...ca de impressões com pessoas que, por exemplo, vindas da América, só tenho hipótese de conversar uma vez por ano, hão-de compreender que é humanamente impossível.

Assim sendo, lá para quinta-feira, uma vez regressado, ainda irei muito a tempo de continuar a pôr-vos ao corrente, não sobre todos os eventos a que assisti mas, tão somente, os que revestirão maior interesse. Apenas para vossa orientação, faltar-me-á escrever sobre dois concertos com a Orquestra Filármónica de Viena, um, no dia 1 de Fevereiro, dirigido por Ivan Fischer, com o pianista Radu Lupu e outro, dia 4, com Daniel Barenboim, ao piano e na direcção; no dia 2, de manhã, sobre o recital do pianista Fazil Say e da violinista Patricia Kopachinskaja; no dia 3 de manhã, Quatuor Ébène e Mitsuko Uchida e, à noite, Les Musiciens du Louvre; finalmente, no dia 5, à noite, outro concerto com a Orquestra do Mozarteum dirigido por Ivor Bolton.

Portanto, ainda poderão contar com tais destas peças que irão aparecendo, sem qualquer pressa, já que nenhum jornal está à espera… Enquanto não me atiro à tarefa, dar-vos-ei conta de uma invejável cena, apenas possível nestas latitudes, precisamente em função do frio tempo que faz. Frio, aqui sim, em consequência do qual os lagos gelam, permitindo o acesso a estupendas pistas naturais, para gaudio de quem sabe e pode patinar no gelo, nomeadamente, crianças e jovens.

São imagens de grande beleza e de uma partilha muito feliz de um tempo propício. Olhando tanta gente feliz, evoluindo através de movimentos tão graciosos, pergunto-me que música terão naquelas cabeças para comporem tal coreografia… E, como não, em sentido oposto, não hei-de ter, bem presentes, outras imagens do viver muito mais macambúzio de uma gente que, vá lá saber-se porquê (?!?), mais a Sul e na periferia, lhe deu para armar em "piegas", tornando-se incapaz de beneficiar de um clima propício a outras cenas...

Ainda lembrando as cenas de patinagem sobre o gelo, e tendo em consideração a problemática do tempo que passa - o outro tempo, que não o meteorológico.... - tão presente na ópera "Der Rosenkavalier" de Richard Strauss, aqui vos deixo uma suite de valsas dessa mesma ópera . A gravação histórica traz-nos a Filarmónica de Berlin, sob a direcção de Bruno Walter. Olhem que é a não perder.


Rosenkavalier Waltzes - R. Strauss - Bruno Walter www.youtube.com
Richard Strauss Rosenkavalier Waltzes Berlin Philharmonic Orchestra Bruno Walter Berlin 14 feb 1930 Columbia LX60



Thomas More, 7 de Fevereiro,
Efeméride esquecida

A vários títulos, não deixa de ser sintomático que, no dia de hoje, não tenham faltado as mais diferentes referências – aliás, justíssimas – ao duplo centenário do nascimento de Charles Dickens e que, pelo menos, até esta já adiantada hora, nada tenha percebido como lembrança mínima do aniversário de um outro cidadão inglês que, no meu entender, a.ém de figura máxima do Humanismo europeu, emparceira com os mais dignos homens de todos os tempos.

Na realidade, só podia estar a lembrar Thomas More. Ainda há poucos dias, devido a uma conotação da “Utopia” de More com a ópera “Utopia, Limited or the flowers of progress” de Gilbert & Sullivan, tive oportunidade de escrever meia dúzia de parágrafos a propósito de quem continua sendo apontado como paradigma de virtudes que, muito naturalmente, a Igreja Católica reconheceu elevando-o ao grau máximo da santidade.

m 28 de Fevereiro, num texto datado de Salzburg, considerava eu que “(…) Thomas More pisou e ultrapassou os limites da humana condição pagando com a vida a dignidade com que não transigiu perante o que não podia nem devia. Que magnífico exemplo! Como ele, também Giordano Bruno. Infelizmente, longe dele, Galileo Galilei que, para salvar a pele, não hesitou em negar a absoluta e radical verdade daquilo que a Ciência lhe tinha permitido descobrir… (…)”

Tenho, retenho e mantenho estas como palavras certas. Neste dia 7 de Fevereiro, apenas acrescentaria um concelho de leitura em relação à extensa obra da autoria de Thomas More. A “Utopia”? Pois claro, mas “Réplica a Martinho Lutero” e “Vida e Obra de Pico della Mirandola”, meus amigos, que páginas de belíssima leitura que estou a sugerir-vos. Tentem aceder nas boas bibliotecas das sedes dos concelhos onde residem. Não se preocupem logo com a compra.

Finalmente, mais uma curiosidade acerca deste santo. É que São Thomas More é, nem mais nem menos, do que patrono dos estadistas e políticos e bem se percebe a razão se nos lembrarmos de que ele foi Lord Chanceler do Reino, algo de coincidente com a figura de um Primeiro Ministro dos tempos modernos. Em Portugal, infelizmente, estadistas não há. Mas, quanto aos políticos, alguns afirmando-se tão católicos, bem podiam organizar umas peregrinações a Londres e fazer umas novenas...

PS:

Há muita documentação audiovisual inspirada na figura de Thomas More. Ainda hoje, costumo recorrer a "A man for all seasons" filme de Fred Zinnemann, inspirado na peça de teatro de Robert Bolt,em que o actor Paul Scolfield (falecido há quatro anos) desempenha um papel extraordinário. Aconselho vivamente. Ainda mais uma curiosidade cultural, esta do mundo da pintura, para referir que o mais célebre quadro retratando Thomas More é da autoria de Hans Holbein.

A propósito, um trailler do filme que, datado de 1966, continua perfeitamente acessível.

http://youtu.be/zbZfh-5QsAw
A Man for All Seasons - Trailer [1966] [39th Oscar Best Picture]




Cidadania e participação

A mensagem que o Miguel S. Martins deixou no seu mural, com referência a uma citação de António Manuel Fonseca, sobre o exercício da cidadania pelas camadas jovens, leva-me, ainda em Salzburg, a partilhar com todos as considerações que acabei de alinhar.

Meu Caro Miguel,

Como sabe, este é um assunto que me tem preocupado bastante a ponto de constituir tema de uma das acções de formação em que intervenho como formador, numa das quais, se não estou em erro, o meu amigo participou. O que António Manuel Fonseca escreve é algo que toda a gente constata e, a tal ponto assim é que poderia dizer-se tratar-se de mais uma Lapalissade sem que, com esta qualificação, pretenda apoucar o pensamento expresso (Vd. citação no seu mural).

Interessante me parece é reflectir sobre as razões que enquadram o fenómeno. Certamente que, para este resultado tão negativo, tem contado - e, de que maneira!... - a mediocridade do modo como exerce o poder a classe política que os cidadãos têm elegido ao longo de décadas.

ontudo, se os cidadãos elegem tais representantes, fazem-no, certamente, tanto por falta de esclarecimento como porque a Lei Eleitoral vigente (que é óptima para perpetuar estes incompetentes e oportunistas alojados nos partidos do designado «arco do poder») que não privilegia os círculos nominais, afasta liminarmente os eleitos dos eleitores.

Mas, a montante de tudo isto, meu caro Miguel, parece-me agigantar-se uma razão, muito poucas vezes conjugada com este quadro, qual seja a da enorme percentagem de analfabetismo funcional e de iliteracia que ainda afecta alguns milhões de nossos concidadãos. Não esqueça o meu amigo, como têm esquecido os governantes portugueses, que o nosso é um país europeu que, na maior parte dos índices de desenvolvimento, nem sequer está considerado entre a média europeia.

Enquanto ainda precisamos de quase uma cruzada afim da Educação de Base de Adultos, a Europa dita desenvolvida preocupa-se, sim senhor, com a Educação de Adultos, mas não tendo que considerar a enorme quantidade de recursos agora necessários ao nosso país, como estratégia de remediação daquilo que deixou de investir a meio da década de oitenta e que hoje lhe custará rios de dinheiro.

Quem me conhece, em especial, como Técnico de Educação, sabe que esta é uma perspectiva que advogo e perfilho há muitos anos. Sempre que estou no estrangeiro, particularmente em países europeus, como é o caso de Áustria, onde há muito foram resolvidas questões para nós ainda tão cruciais, tão presentes, cada vez mais difíceis de equacionar, ainda mais aguço essa convicção.

Finalmente, pois claro, não posso ter outra opinião: a cidadania, a participação cívica para resolução dos problemas que afectam os cidadãos, não é coisa que se decrete. Infelizmente, não. Cidadania e participação constituem termos de um binómio indissociável da tríade que tem no civismo a outra vertente.

Nos dias de hoje, são princípios e valores que coincidem com a ideia de patriotismo, pressupondo um caminho de vivência diária da democracia. Mas, assim sendo, estamos num círculo vicioso porque a qualidade da vida democrática depende do exercício da cidadania. Ah, pois estamos...

Mas, meu caro Miguel, muito mais do que eu, quem sabe disto é, por exemplo, o Manuel Lucas Estêvão que foi Director-Geral da Educação de Adultos do Ministério da Educação, co-autor de um Programa Nacional de Alfabetização e Educação de Base de Adultos (1979), com quem tive o gosto de trabalhar alguns anos como técnico superior daquele serviço. Talvez ele possa acrescentar mais alguma coisa. É que, ainda por cima, estando eu em Salzburg, longe da minha documentação, não me é fácil ser mais prestável.

Um forte abraço,

João Cachado


Salzburg, 3 de Fevereiro
Mozartwoche, 2012

Questões térmicas... e outras

É simplesmente para avisar os familiares, amigos e tutti quanti que não me venham com mais detalhes sobre as baixas temperaturas nas lusas paragens... Por favor, tenham decoro! ... Há pouco, saindo do fabuloso concerto com Les Musiciens du Louvre, acerca do qual vos escreverei mais tarde, fui passar pela lindíssima, bem conhecida e fidedigna torre metereológica de Salzburg. Só queria confirmar o que as minhas barbas, entretanto já cristalizadas por cem metros de desvio, me davam a entender: quatorze negativos!

Não foi nada que me tivesse especialmente surpreendido porque já aqui suportei temperatura ainda mais negativa. No entanto, aposto que estou mais confortável aqui do que vocês com esses miseráveis 0º ou lá o que é...

Outro assunto. Como verificaram, o José Manuel Anes não acusou a recepção do escrito que lhe dirigi. Assim sendo, estão privados da música que lhe sugeri ele próprio propusesse. A colmatar a falta, não vou substituir-me à sua intervenção mas, isso sim, sugerir-vos que escutem com atenção a peça que se segue. Não ouvirão música mas a música está toda lá.

Consegui encontrar esta entrevista a Nikolaus, Graf (conde) Harnoncourt, o mais revolucionário dos aristocratas que conheço, com legendas em Inglês, numa passagem em que se refere ao assunto supra. É uma longa luta que ele vem travando aqui na Áustria, através de uma intervenção cívica que, vinda de quem vem, não pode ser mais autorizada.


http://youtu.be/-IuBsD3FmiI

sábado, 4 de fevereiro de 2012

René Jacobs,
em busca do autêntico


Salzburg, 2 de Fevereiro
Mozartwoche, 2012

Meu Caro José Manuel Anes,

Este pequeno apontamento só podia tê-lo a si como destinatário. E, no contexto da minha estada em Salzburg, por ocasião da Mozartwoche 2012, só a possibilidade de poder trazer-lhe notícia do seu René Jacobs, determinaria este modesto escriba à ousadia de intermediar relação tão especial entre o maestro e o meu caro amigo.

Pois, José Manuel Anes, ontem à noite, na mítica Grosse Saal da Fundação do Mozarteum de Salzburg, René Jacobs dirigiu a prestigiada Camerata Salzburg num programa eminentemente clássico, compreendendo a ‘Sinfonia em Ré Maior Hob. I: 104, Salomon’, de Joseph Haydn e, do divino, o ‘Concerto em Lá Maior para Clarinete e Orquestra, KV 622’ bem como a ‘Sinfonia em Ré Maior KV 385, S Haffner’.

Como sabe, fundada por Bernhard Paumgartner em 1951 e, entre 1978 e 1997, dirigida pelo saudoso Sandor Végh, esta preciosidade de orquestra de câmara tem o ‘Klang’ de Salzburg no mais alto grau - assim um 33º na escala de João Cachado… – portanto, digníssimo agrupamento, à altura da intervenção de Jacobs que, tal como ‘o outro’, tão imperador como este, chegou, viu e venceu.

Sem entrar em detalhes para os quais, infelizmente, também não me sobra tempo, dir-lhe-ei o que mais importante me parece. É que, tal como estamos habituados, mais uma vez fez o trabalho em que é perito, qual seja o da limpeza das partituras das obras que veio dirigir dos «parasitas» de leituras mais ou menos romantizadas que, para nosso espanto, continuam a fazer um caminho que só prejudica o serviço a que, entre outros, têm direito Amadé e Haydn.

Assisti a leituras das mais eficazes – no caso da ‘Haffner’, talvez mesmo a mais eficaz – que já presenciei, em especial, aqui em Salzburg e nesta mesma sala. Um respeito absoluto, sem cedências, a todos os efeitos solicitados pelos compositores, por exemplo, nas pausas, por mais longas e incómodas que pareçam, leitura «so-le-tra-da» da intervenção dos timbales, repondo toda a verdade inicial. Um assombro, cumpre sublinhar.

Como verificou pela leitura do programa, também tivemos o Concerto para Clarinete, cujo solista Jorg Widman, é muito querido por aqui mas não tão prendado, por exemplo, como a sofisticadíssima Sabine Meyer, ‘die Göttin’ a deusa, de acordo com o epíteto que colegas lhe atribuem. Mas foi muito bom e a direcção do seu RJ, mais uma vez, impecável.

Uma nota final para o comportamento do público. Não vamos pensar que, por estarmos em Salzburg, estamos isentos de alguma arrogância, sobranceria e, pasme-se, até certa dose de ignorância que afecta o comportamento da audiência, não raro, a reagir mais friamente, porque lhe roubaram determinado efeito, um dos tais «parasitas», a que estava habituada. Se ontem isso também sucedeu, não chegou para beliscar sequer o brilho do trabalho a que me reporto.

Finalmente, não ouso sequer propor a ilustração mais afim deste escrito que lhe deixo com amizade e franca admiração. Deixo ao seu bom gosto essa tarefa que, ao contrário do que muitos dos nossos amigos possam pensar chega a ser bastante ingrata.Um grande e fraternal abraço,

João Cachado

Mozart, que presença

Salzburg, 31 de Janeiro
Mozartwoche 2012

Ao contrário do que acontece noutras cidades europeias onde, de algum modo, passados muitos anos, por vezes séculos, após a morte de escritores, músicos, arquitectos ou filósofos que a terão notabilizado, ainda é possível sentir a sua presença, em Salzburg tal não acontece em relação a Mozart, o seu filho mais célebre.

screver isto tem os seus riscos já que logo me atacarão lembrando as casas-museu, onde nasceu, na Getreidegasse e outra, na Makart Platz, onde, mais tarde, viveu com a família. Provavelmente, também me dirão de duas estátuas, na praça com o seu nome e em Kapuzinenberg. E os Kugeln de chocolate, a sua figura glosada e recriada nas mais diferentes estéticas, um pouco por todo o lado? E o seu próprio nome em tudo quanto é comércio, camisolas, pastelarias, etc, etc…

Pois, muito bem. Mas é a isto que eu me refiro quando escrevo ‘sentir a presença’? Claro que não é. Querem um exemplo, significativamente notório do que possa isso ser que, ainda com muito por fazer para que se torne num paradigma? Pois pensem em Lisboa e na relação que com ela teve e manteve Fernando Pessoa. Aqui bebia uns copos, ali conversava em tertúlia, os inúmeros quartos alugados, os cafés, os passeios, os negócios da gráfica, as neuras, o rio, o sino da sua aldeia…

Em Viena, há um pouco mais dessa tal mozartiana ‘presença’. Mas aqui não. Decididamente, não. Muito turismo, casas-museu que expõem hipóteses de cenário ainda que com instrumentos musicais, objectos pessoais, etc, mas a tal presença substantiva, isso não. Lamento muito desapontar mas, se pensam vir a Salzburg em busca desse Amadé, desengano-vos já.

Isto mesmo constatou o querido e saudoso João Bénard da Costa, homem de superior bagagem erudita e cultural, observador de raríssimo estrato, um grande senhor da Cultura Portuguesa dos últimos tempos a quem Portugal muito deve*, que por aqui passou, por exemplo, para vir ouvir um Don Giovanni de muito badalada encenação, tendo oportunidade de escrever algo deveras semelhante ao que acabo de registar.

Escrevia ele que Salzburg, se alguma significativa marca apresenta, não de Mozart, mas da estética da urbe onde Mozart viveu até aos vinte e cinco anos, presença fortíssima de que nós ainda hoje beneficiamos, pois essa é a que Johann Bernhardt Fischer von Erlach, o grande arquitecto do período barroco, determinou para a posteridade, aqui deixando marcas indeléveis de um património riquíssimo, como as igrejas da Santíssima Trindade, da Universidade, das Ursulinas, da ireja do Johannspital em Mülln, Palácio Klessheim ou, ainda, no interior da igreja dos franciscanos, o fabuloso altar-mor, como já tive oportunidade de referir.

Porém, assim como, uns parágrafos atrás, tão desalmadamente vos desiludi, agora me apresso a compensar-vos com a certeza de uma presença outra de Amadé, qual seja a que se sente, vive e vibra todos os dias do ano, na Fundação Internacional do Mozarteum de Salzburg, da qual tenho a honra de ser membro e, atenção, muito especialmente, na Universidade do Mozarteum.

A atestá-lo, as centenas de jovens de todo o mundo, que aqui acorrem em busca de um ensino e musical vivência absolutamente de excepção, atraídos pelo legado e espiritual presença de Wolfgang Amadeus Mozart.Essa sim é a presença que, afinal, acaba por ser menos sentida pelos milhões de turistas que acorrem a Salzburg, absolutamente nada preocupados com Mozart e o seu legado e muito mais determinados ao gozo da possibilidade da visita aos lugares onde foram filmadas sequências de ‘Música no Coração’…

Nem queiram saber as histórias que poderia contar-vos sobre este alheamento das massas ignaras, aqui na cidade, em relação a Amadé. Não deixa de ser curioso, como o é noutros lugares, em relação a outras ilustres figuras, que Mozart tenha sido o ’isco’ para a frutuosa pesca do turismo e que, em simultâneo, seja tão ignorado.

Os jovens estudantes e graduados académicos do Mozarteum comovem-me todos os anos, pelo seu entusiasmo, dedicação, entrega e procura de Amadé, nas linhas dos pentagramas, nos interstícios das pautas, conduzidos por óptimos e atentos professores. Por isso, esta universidade é tão cobiçada e demandada por interessados de todas as latitudes. As provas de acesso são proverbialmente exigentes, os cursos não menos. Mas o ‘cartão de visita’ com a marca do Mozarteum de Salzburg abre portas em todo o lado…

É no contexto destas considerações e no absoluto e estrito respeito por ‘esta significativa presença’ de Mozart em Salzburg, que hoje vos trago a gratíssima memória do concerto do passado dia 31, na Grosse Saal do Mozarteum, precisamente com a Orquestra Sinfónica da Universidade do Mozarteum. Entre outras obras, incluindo, de Webern, ‘Cinco Peças Orquestrais, op.5’ e, de J. Haydn, a ’Sinfonia em Mi bemol Maior, Hob. I: 103’, gostaria de destacar a ‘Sinfonia Concertante em Mi bemol Maior para Violino, Viola e Orquestra, KV 364’ de Mozart.

É esta a orquestra académica através da qual os jovens vivem o privilégio de continuar o designado ‘Klang’ de Salzburg e que tem tido, desde 1999, a diligente direcção musical de Dennis Russel Davies. Mas o concerto desta data foi regido por Douglas Boyd, Maestro escocês e grande oboísta, que aqui conheci, há uns bons dez anos, ainda integrando a Orquestra de Câmara da Europa, da qual foi um dos membros fundadores. A propósito, se tiverem lido um dos meus prévios textos abordando a questão da postura de alguns jovens chefes de orquestra, pois aqui têm um caso de atitude irrepreensível, discreta, sóbria.

Os solistas, Thomas Reif, violino, e Ulrike Jaeger, viola, são de primeira água e tenho o prazer de poder partilhar convosco a certeza de que, na interpretação da sinfonia concertante, foram extremamente cooperantes, falando o’mesmo idioma’. Não se espantem porque é coisa que nem sempre acontece, nomeadamente, em presença de ‘galácticos’ como tive oportunidade de assistir, há seis anos, aqui também, num concerto no Grosses Festspielhaus em que o violetista Thomas Zehtmair, de modo algum, se entendia com o violinista Gideon Kremer. Pois é, egos desmedidos matam a Arte…

Muito atento a todos os naipes, especialmente às cordas, Boyd atacava qualquer hipótese de deslize evitando o mínimo desequilíbrio. A leitura da peça foi absolutamente irrepreensível e, sem dúvida, o Mozart que permanece no ‘Klang’ das três orquestras de Salzburg – Orquestra do Mozarteum de Salzburg, Camerata Salzburg e Orquestra Sinfónica da Universidade Mozarteum – andou por ali.

Em St Sebastian alojam-se muitos destes estudantes. Quando aqui venho, convivo com eles, em especial ao pequeno almoço, onde tenho conhecido alguns que já têm carreiras interessantes. Também é por isso que não troco St Sebastian por nenhum hotel das redondezas apesar de, no meu caso, os preços andarem ela por ela, uma vez que, embora amigo da casa, não gozo das tarifas mais vantajosas aplicáveis à rapaziada que aqui passa largas temporadas.

Portanto, se quiserem vir até Salzburg, vão lendo estas dicas e, já sabem, podem contar com a ajuda que já tenho prestado a quem estiver interessado em fazer uma visita não de turista mas de viajante.

Na impossibilidade de vos propor uma gravação com a Orquestra Sinfónica da Universidade Mozarteum, deixo-vos com estes dois gigantes David Oistrakh e Rudolf Barshai e a Orquestra de Câmara de Moscovo. E, propondo esta gravação, com estas duas lendas, pois fiquem sabendo que ainda vi e ouvi Oistrakh, em Lisboa, no Coliseu, em 1960, com Pedro de Freitas Branco, na direcção da Orquestra da Emissora Nacional, tocando o Concerto para Violino de Tchaikovsky.
Era eu miúdo, com o meu pai, o culpado máximo desta minha aventura de melómano inveterado.


*É com um gosto muito especial que posso garantir-vos estar o Presidente da Câmara Municipal de Sintra muito emSinfónica da Umiversidade do Mozarteumpenhado em concretizar uma ainda que singela homenagem à memória de João Bénard da Costa. Trata-se de uma atitude muito honrosa para o Prof. Fernando Seara, assim demonstrando quanto está atento aos valores da cultura nacional que, como no caso em apreço, teve uma relação muito estreita com Sintra.

http://youtu.be/Nf0_tKOyqkc
Mozart Sinfonia Concertante 2nd Movement. Oistrakh, Barshai, Moscow Chamber Orchestra www.youtube.com

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012



Que frio!...


Bom dia,

Ouvi dizer que, por aí, a temperatura ia baixar. Pois, então, consolem-se como puderem porque, aqui em Salzburg, hoje de manhã estão -9º, logo à tarde estarão -10º e quando o Sol se puser -13º. Este ano ainda não, mas já tive mais baixas. Amanhã por, exemplo, prevê-se temperatura mais negativa.

Não tem caído neve nos últimos dias - que me faz uma falta louca já que também aqui venho para gozar esta cultura de Inverno do centro da Europa de que tanto gosto - mas o branco permanece no gelo que se formou. Tudo isto é muito bonito mas coloca problemas muito sérios de operacionalidade aos serviços municipais.

Por exemplo, para que os peões não escorreguem no gelo, os cantoneiros lançam uma gravilha fina que, quando degela, corre para as sargetas significando isso uma especial atenção previsional quanto à acumulação pois, caso contrário, haveria problema.

Mas, de facto, nunca há, ao contrário de certos sítios, que bem conhecemos, onde com condições climáticas muito mais propícias, acontecem constantes inundações devido ao descuido das limpezas que deveriam ter sido efectuadas a montante e atempadamente.

Civismo, respeito pelos interesses dos cidadãos, disciplina, contínuo e controlado exercício da autoridade democrática, por aqui, não são princípios e valores que deixem de ser quotidianamente conjugados. E exercidos, sem tibiezas, sem tolerâncias ou porreirismos que todos sabemos no que dão.

Já vai longa a prosa que, inicialmente, só pretendia brincar um pouco com as temperaturas locais de cá e daí. Pelos vistos, a minha, com o correr da pena, já subiu um pouco... Para que tudo volte ao controlo desejado, aqui vos deixo com Mitsuko Uchida, tocando o Menuetto da Sonata para Piano KV331 em Lá Maior de Mozart.

Dentro de uma hora, no Mozarteum, mas interpretada pelo jovem pianista Fasil Say, ouvirei esta mesma peça, no contexto de um recital acerca do qual vos darei conta mais tarde. Por agora, boa audição!

PS: Datado de 1789, o retrato do compositor,desenhado por Doris Stock (1760-1832), que aparece introduzindo a gravação, é o último e mais fidedigno que se conhece.

http://youtu.be/NoFebNkdpd4
Mozart- Piano Sonata in A major ('Alla Turca') K. 331- 2nd mov. Menuetto
http://www.youtube.com/