[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Sintra,
ou a cultura dos futebóis

Tenho a certeza absoluta. Bastaria que, em qualquer jornal local, apenas por uma vez, alguém tivesse chamado a atenção da Câmara Municipal de Sintra para a necessidade de homenagear o futebolista ou dirigente de um qualquer, mais ou menos obscuro clube do concelho e a positiva resposta não teria faltado por parte da autarquia, com a celeridade habitual, já que estas coisas do futebol, essas sim, lhe merecem a mais séria consideração.

Sem diferenças de maior, o mesmo se passa com a indigente casta de apresentadores, locutores ou cantores e músicos populares que, através da RTP, SIC e TVI preenchem as manhãs e as tardes, de domésticas e velhinhos que, em suas casas ou nos centros de dia das misericórdias, perdem o pouco tempo que lhes resta ouvindo e vendo as baboseiras desses comunicadores de terceira classe, alguns dos quais são nossos vizinhos, galardoados com a medalha de ouro do concelho.

Ao contrário de Cascais ou de Oeiras, onde artistas plásticos, músicos, mulheres e homens de letras são tratados com o devido respeito – e lembrados pelas comunidades, quer através da toponímia e das casas onde residiram, quer por se terem tornado patronos de equipamentos culturais – Sintra apenas lhes dedica o olímpico desprezo ditados pela geral incultura e reinante ignorância.

Enfim, a cultura é outra coisa, dá muito mais trabalho. Contudo, quanto mais trabalho, tanto mais gozo... Para estar à altura, é preciso ler bastante, todos os géneros de literatura, estar atento à comunicação social escrita e audiovisual, nacional e internacional, frequentar exposições e concertos, ir à ópera, ao teatro e ao cinema, fazer o possível por estar actualizado quanto às grandes preocupações do mundo, tanto no campo das humanidades como no das ciências, é preciso viajar, com os sentidos bem despertos, contactar as mais diversas gentes, de todas as idades, concedendo todo o tempo necessário a tão complexo processo.

Actualmente, não me consta que, pelos corredores do Roseiral, circulem responsáveis com o perfil cultural enunciado no parágrafo anterior. De modo algum. A gente culta de Sintra que, por ali, poderia andar, ou dali foi arredada ou auto excluiu-se. Por aqueles lados, as maiores preocupações estão voltadas para os relvados, televisões, telenovelas ou caricatas figuras de marchands de bijutarias…

Mily Possoz. Quem?

De facto, é perfeitamente impossível e escusado pensar que Sintra proceda, relativamente a Bartolomeu Cid dos Santos ou Mily Possoz, como Cascais tem feito em relação à sua gente das artes e das Letras. Ora bem, como acabam de verificar, ao lado de Bartolomeu – que já se tornou um pretexto para a luta que empreendi no sentido de chamar a atenção geral para a necessidade de assinalar na urbe os nossos valores culturais – coloquei o nome de Mily Possoz.

Pois bem, fi-lo, penso eu que com a maior pertinência. Reparem que, ontem mesmo, foi inaugurada, uma exposição de obras de Mily Possoz, na Fundação Arpad Szenes Vieira da Silva, ao Jardim das Amoreiras. [Então, é agora chegado o momento de dar uma ajudinha ao distraído pessoal do Roseiral…] Mily Possoz (1888-1967), companheira da grande aventura e desafios vividos pelos humoristas e independentes, foi uma irreverente pintora, de ascendência belga, que conquistou lugar de destaque no movimento modernista português.

Faço sinceros votos de que passem pelo museu das Amoreiras. Se aceitarem o meu repto, hão-de verificar como tão certos são os comentários que, acerca da sua obra, assinaram José Augusto França ou Rui Mário Gonçalves nos manuais, catálogos e documentos afins da Arte contemporânea. Se querem ter uma ideia do que foi o fauvismo português, indispensável se torna voltar a Possoz que é o seu nome mais representativo e importante.

Trata-se de uma artista que, tendo passado pela célebre escola de irreverentes que é a Académie de la Grande Chaumière, desenhou compulsivamente, com um espantoso sentido de humor, frescura, espontaneidade e grande originalidade. Como tantos outros artistas portugueses seus contemporâneos, aceitou a proposta do Arq. Cotinelli Telmo, Comissário da Exposição do Mundo Português, tendo colaborado com um biombo, de inspiração na tradição Namban, que, entretanto, se perdeu. Todavia, recentemente, foram encontrados esboços afins.

Muito mais poderia escrever sobre Possoz que, tendo residido em Sintra, muito pintou Sintra e aqui morreu, quase no fim da década de sessenta, na sua casa, muito perto da do seu bom amigo… Bartolomeu Cid dos Santos. Disse-me ele, várias vezes, que, ali, na Vila Velha, em termos de recuperação de casas com memórias, nada lhe daria mais alegria do que ver bem tratada a casa da Mily Possoz, casa onde, durante muitos anos, também viveu o pintor Eduardo Viana.

Já escrevi acerca desta vontade do Barto, do património desleixado, colado à memória de outra artista, que quase perdida está para estas paragens, tão madrastas, relativamente a quem tinha Sintra no coração, que a pintou de maneira tão interessante e original, como testemunha o quadro da Colecção do Palácio Foz que tem Sintra como título.

+ Sugestões

Primeiramente, esqueçam a vida cultural em Sintra. Salvo raríssimas excepções, não vale a pena agendar eventos. Se quiserem e puderem, não deixem de seguir o meu conselho. Vão até às Amoreiras. Percam-se por ali. Apesar da chuva, o jardim, mesmo junto da Mãe d' Água, é um must em Lisboa. Sei do que falo e escrevo. Nasci mesmo em frente, na Rua das Amoreiras, em casa dos meus avós maternos, num tempo em que ainda se nascia em casa, e as casas eram grandes, belas, com enorme pé direito e até tinham um estupendo sótão para as fantasias dos infantes…

Infelizmente, devido ao adiantado da hora, poucos serão os que ainda aceitariam outra sugestão, para o fim do dia de hoje. Lembram-se de vos ter escrito que está patente uma exposição de obras do Bartolomeu* no Centro de Arte Manuel de Brito, Palácio Anjos em Algés, iniciativa da Câmara Municipal de Oeiras?**

Pois, às 21,30, acontece o primeiro de um ciclo de nove concertos de música de câmara, comentados pelo compositor Alexandre Delgado. O ciclo abre com a actuação do Quarteto com Piano de Moscovo, grupo que comemora em 2010 os seus vinte anos de existência, num programa que reúne uma obra russa, uma obra portuguesa e o primeiro dos dois quartetos com piano de Schumann, uma bela obra de juventude do compositor, só editada recentemente.

Eu não vou perder o excelente programa do qual consta o Quarteto com Piano em mi maior, op. 20 de Serguei Taneiev, Canteto, de Alexandre Delgado e Quarteto com Piano [n.º 1] em dó menor de Robert Schumann.


Já sei que terei um belíssimo serão musical e, ainda, mais uma vez, a possibilidade de ver trabalhos de Barto, de recordar o nosso convívio, amizade e melomania patológica… Depois, se Deus Nosso Senhor quiser, no regresso a casa, e já em Sintra, continuarei a noite, com outras músicas, na companhia de um Collares, como sempre faço, em sua memória.

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*vd. Bartolomeu, que saudades!..., neste mesmo blogue, há uns dias atrás;

**CAMB I Centro de Arte Manuel de Brito
Palácio Anjos, Alameda Hermano Patrone,1495-064 Algés
Telf : 21 4111400
camb@cm-oeiras.pt http://camb.cm-oeiras.pt




terça-feira, 23 de fevereiro de 2010


Sintra,
no seu melhor


No passado dia 18 do corrente, Luís Galrão (LG) assinava no Diário de Notícias uma notícia a propósito de uma decisão do Tribunal de Contas relativa ao polémico negócio, que remonta a 2007, nos termos do qual a Emes (empresa municipal de estacionamento) vendeu 30% do capital à empresa privada Gisparques.

Os juízes do referido Tribunal não estiveram com demasias e, sem quaisquer ambiguidades, sem meias palavras, declararam que a venda foi ilegal. Tal e qual, com todas as letras. Mais justificaram que assim decidiam porque houvera violação das leis da concorrência.

E, ainda mais, chegaram ao ponto de sublinhar que “(…) não se pode deixar de concluir pela existência de um auxílio ilegal a favor da empresa (…)” Agora, meus caros leitores, para além desta tão inequívoca quanto polémica atitude de contorno ou, se preferirem, de ultrapassagem das determinações legais vigentes acerca das leis da concorrência, sabem como se defende a Câmara?

Não vou esquecer a resposta. Mas, primeiramente, convém recordar tratar-se de uma empresa municipal, daquelas cujo enquadramento legal – de acordo com notícia publicada pelo «saudoso» Jornal de Sintra, em 8 de Março de 2002 – o Dr. Fernando Seara encarava como lhe parecendo “(…) inadmissível conviver com situações que embora à partida satisfaçam formal e substantivamente os preceitos legais, não se afiguram justificáveis encaradas à luz do direito público.”

Volto à matéria. Pois fiquem sabendo que a Câmara, segundo a mesma notícia, não deixando de defender os fundamentos do negócio, "salienta que o contrato prevê uma cláusula de resolução, caso o Tribunal inviabilizasse o acordo". Estão a ler, tal como eu li, confiando nas palavras de Luís Galrão e, certamente, estarão perplexos, como eu estou. É que, se bem entendemos, logo prevendo que a coisa pudesse dar para o torto, o contrato de cedência engendrava a maneira airosa de descartar quaisquer consequências menos convenientes...

Mas, então, e a boa fé? A tão celebrada e prezada bona fide, que se pressupõe ser condição sine qua non para a celebração de um contrato, nomeadamente num caso em que envolve uma empresa municipal [das tais que não se afiguram justificáveis encaradas à luz do direito público…], articula-se com este tipo de táctica jurídica? Olhem, leio e custa-me a acreditar. Enfim, Sintra no seu melhor.

Finalmente, uma consequência deste despautério que não posso deixar de considerar divertida. Disseram-me que há munícipes, desde sempre tão avisados e cautelosos em relação a esta situação, que têm guardado os títulos de estacionamento pagos até agora e que se preparam para os apresentar no sentido de se ressarcirem perante a Câmara, por se sentirem lesados numa cobrança efectuada por entidade que, afinal, não estava intitulada para o efeito. De facto, ele há gente para tudo! Ui, que maldosos…

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Bartolomeu,
que saudade!...

No que respeita à actividade cultural em geral, e, mais especificamente, em tudo quanto se relaciona com atitudes que, inequivocamente, contribuam no sentido de fazer perdurar a memória dos artistas que amaram Sintra, viveram e, de modo especial, se relacionaram com esta terra, já se sabe que, salvo raríssimas excepções, não se pode contar com a Câmara Municipal.

Veja-se, por exemplo, o caso de Bartolomeu Cid dos Santos. Todos os que acompanham as páginas deste blogue, sabem do especial apreço pelo homem que foi meu amigo e pela obra do artista cujo nome é de máxima grandeza nas artes plásticas e Cultura Portuguesa contemporânea, reconhecido como tal em todo o mundo civilizado.


Enfim, não será assim por todo o lado porque há quem desconheça que Bartolomeu é tão grande como Paula Rego. E basta pensar nestes dois artistas, articulando o primeiro com Sintra e a segunda com Cascais para concluir por onde, a nível dos respectivos executivos autárquicos, andará o esclarecimento e a falta dele.

Se, em Cascais, a respectiva Câmara Municipal tem feito pela pintora tudo o que é possível para a merecer, o mesmo não sucede em Sintra, onde, olimpicamente, a autarquia ignora Bartolomeu Cid dos Santos, que foi nosso vizinho na Vila Velha, ali tendo habitado uma casa cheia de especiais recordações, à Fonte da Pipa.

Bem enraizada, ali para os lados da Rua do Roseiral, a institucional e sintrense ignorância acerca da excepcional valia de Bartolomeu não alastrou, felizmente, a outros concelhos limítrofes, como o de Oeiras. Nem mais. Para o efeito de vos dar conta de que assim é, desde já me socorro de informação oficial daquela autarquia que passo a transcrever:


O CAMB - Centro de Arte Manuel de Brito apresenta Bartolomeu Cid dos Santos e Going South, de 30 de Janeiro a 16 de Maio de 2010.

Neste bloco expositivo consagrado à memória do artista Bartolomeu Cid dos Santos, falecido em 2008, o CAMB apresenta, a par de uma mostra individual de obras do artista na Colecção Manuel de Brito, um projecto expositivo autónomo designado “Going South” que reúne um conjunto de trabalhos (fotografia e escultura) desenvolvidos por cinco artistas contemporâneos que lhe prestam tributo: John Aiken, Miguel Martinho, Ana João Romana, Samuel Rama e Valter Vinagre.

Dando continuidade à linha de programação expositiva que tem visado divulgar os artistas mais representativos ou mais emblemáticos da Colecção Manuel de Brito, este bloco expositivo tem particular simbolismo, atendendo à ligação que o artista Bartolomeu Cid dos Santos tinha ao Palácio Anjos, por ter sido este o local onde viveu a sua infância e onde aprendeu a desenhar.
Nesta exposição individual é apresentada sobretudo gravura, produzida pelo artista entre a década de 50 e a actualidade. (…)” O CAMB está localizado no Palácio Anjos, Alameda Hermano Patrone, em Algés
(…)”


Em Algés, sob a égide da Câmara Municipal de Oeiras.

Senti hoje grande saudade deste querido amigo que Sintra tarda a homenagear. Provavelmente, porque, mais uma vez, passei pela Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais, e, como acima dei a entender, não podia ter deixado de comparar. À minha medida, de vez em quando, vou lembrando o Barto. Por isso vos peço licença para, já de seguida, voltar a colocar, na primeira página, o texto que escrevi em 26 de Maio de 2008, poucos dias depois da sua morte.


NB:
Neste blogue, sobre Bartolomeu Cid dos Santos, ler os textos publicados em 26.05.08, 03.07.08, 24.09.09, 27.11.09

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Bartolomeu Cid dos Santos
(1931-2008)



Na passada quarta-feira, dia 21, morreu em Londres Bartolomeu Cid dos Santos. Ia nos setenta e seis anos, solto das coordenadas do tempo, um menino, é verdade, grande e gordo, amante das boas coisas da vida e preocupado com as mais sérias questões da vida. Venho contar-vosda nossa relação de amizade, indissociável do comum amor a Sintra.

Naturalmente, a outros deixo as referências biográficas deste grande nome da arte portuguesa contemporânea. Todavia, imperioso se revela abordar um ou outro aspecto da vida do homem e do artista, especialmente porque tive o privilégio de beneficiar do seu encanto, em doses inesgotáveis, na sábia sedução que imprimia às conversas pelos caminhos da Arte.

Desde logo, mencionaria o pai, o famoso médico Prof. Cid dos Santos, conhecido humanista, homem de grande cultura, a quem o filho muito viria a dever por toda uma formação e educação direccionada para as artes e humanidades. O Bartolomeu menino estudou, por exemplo, música e alemão, absolutamente determinantes para que, mais tarde se revelasse o inevitável melómano em que se tornou.

Apetecia reproduzir episódios que me contou da sua meninice, tantos e tão ilustrativos desse tempo em que, por ser filho de quem era, pôde contactar a fina flor da intelectualidade portuguesa e internacional, nas salas e à mesa da sua casa ou em viagens inesquecíveis e únicas. Como certa deslocação a Paris, com o pai, por essa estrada fora, no automóvel da família, parando em Espanha, a visitar o médico e escritor Gregorio Marañon, em cuja casa foi descobrir uma autêntica e surpreendente galeria, com obras dos mais notáveis artistas, recentes e de épocas passadas.

Um grande melómano

Comigo, Bartolomeu partilhava o gosto pela música. Quando percebeu que, tal como para ele, a língua alemã é, também na minha perspectiva, instrumento inseparável do acesso a particularidades do universo de Wagner, concluiu que podia confessar-me as suas mais remotas experiências pessoais e directas, ainda miúdo, por exemplo, com a Tetralogia do compositor de Bayreuth.

Em especial, falou de certa récita do Siegfried que assistira em São Carlos, em plena guerra, quando o mítico maestro Knappertsbusch veio a Lisboa dirigir a Filarmónica de Berlin, na mesma oportunidade em que alguns músicos desta orquestra tinham jantado em sua casa… Se isto não é privilégio, então desconheço o que isso seja. Mas compreendo que, por causa das invejas, apenas se conte aos iniciados…

Com ele, a conversa nunca era coisa gratuita e, pelo contrário, sempre estimulante e oportunidade para saber mais. Melómanos inveterados, envolvemo-nos em discussões muito vivas e interessantes. Não raro, tive de recorrer à mais diversa documentação e bibliografia, para sustentar ou corrigir alguma opinião, dele ou minha, para esclarecer qualquer dúvida pertinente.

Neste domínio, em diferentes ocasiões, cheguei ao ponto de incomodar um grande amigo, o Dr Mário Moreau que, com o seu enciclopédico conhecimento do mundo da ópera, nos ajudou a clarificar aspectos mais ou menos obscuros que, também frequentemente, se revelavam altamente desafiantes, em diálogos sem fronteiras, em que toda a Arte, desde a poesia, à pintura, à gravura, à música, em que a política e, particularmente, a participação cívica se articulavam em coerente mosaico.

Sintra, uma preocupação

Contudo, muito sintomaticamente, o que nos fez aproximar não foi a melomania. Deu ele o primeiro passo, precisamente por intermédio do Jornal de Sintra, através de um artigo que subscreveu, em simultâneo com uma carta que me dirigiu, a propósito do estado lamentável do centro histórico, coisa que ele sentia na pele, na medida em que a sua casa, nas Escadinhas da Fonte da Pipa, constituía ímpar ponto de partida para a melhor avaliação.

O Bartolomeu era homem de esquerda, senhor de fortes convicções políticas. Como alguns de nós, mas contra a opinião dos mais poderosos, acreditava na capacidade de mudar a polis, através da participação em lutas de intervenção cívica, na possibilidade de viver uma vida democrática que ultrapasse a retórica dos discursos inconsequentes e se comprometa com as pessoas, com os seus problemas reais e concretos.

Uma das causas que mais o mobilizava era a da defesa e preservação do património, questão bem real e concreta que, inequivocamente – se for perspectivada numa actuação integrada e abrangente – pode contribuir para a mudança em geral e para a melhoria da qualidade de vida em particular. Se alguma prova necessária fosse, demonstrativa do seu empenho, bastaria recordar o apoio pessoal à iniciativa da discussão dos problemas do bairro da Estefânea. Tive-o, exactamente ao meu lado, na mesa que conduziu o aceso debate daquele dia 22 de Março de 2004…

Tinha a família entranhada em Sintra há várias gerações, não estava sempre por aqui mas, quando estava, adorava. E, muito naturalmente, também sofria, como só pode quem assiste à contínua degradação desta sede de concelho que, afirmava ele constantemente, merece outro cuidado, uma gestão adequada às características, ao perfil e ao espírito do lugar.

O artista empenhado

Era um grande senhor da Cultura Portuguesa dos nossos dias. Há mais de cinquenta anos, fundara a Gravura, sociedade cooperativa de artistas gráficos que, em termos concretos e práticos, constituía uma entidade cujos objectivos eram afins da sua postura e filiação política. Como lembrava José Cutileiro, no Expresso do sábado passado, pelos seus dezassete anos, Bartolomeu era já um jovem comunista, capaz de pôr a tocar A Internacional, no ‘pick up’ aos berros, em manobra provocatória…

Mesmo em termos internacionais, Barto – como era conhecido lá por fora – é um nome incontornável da gravura, tão grande e significativo que os ingleses lhe souberam reconhecer o enorme mérito, admitindo-o como professor da célebre Slade School of Fine Arts de Londres, já no princípio dos anos sessenta, ali se mantendo até noventa e seis, altura em que se aposentou. Altamente honrosa, a sua nomeação como professor emérito de Arte da Universidade de Londres e membro da Real Sociedade Britânica de Pintores e Gráficos.

Detentor de um currículo espantoso, foi professor convidado e consultor de várias universidades europeias, fez inúmeras exposições por esse mundo. A fundação Gulbenkian que, como é sabido, não dá ponto sem nó, e só mesmo aos muito grandes dá a honra da promoção de exposições retrospectivas, concretizou uma sobre a obra de Bartolomeu Cid dos Santos cuja concepção era extremamente interessante, tendo constituído assinalável sucesso.

Que homenagem?

Em cerca de três meses, deixaram-nos dois nomes máximos das Artes e Letras portuguesas. Só a sintrense universal incultura se pode permitir não dar o devido destaque à perda de Maria Gabriela Llansol e Bartolomeu Cid dos Santos. Pensar que a sua memória se honra com o minuto de silêncio da ordem, não passa de brincadeira com coisas sérias…

Aliás, depois de tão atrabiliárias concessões de medalhas de ouro do concelho, a figuras totalmente insignificantes cá do burgo, também não imagino o que poderá a Câmara fazer… Uma coisa eu sei, que várias vezes me confessou. Dar-lhe-ia muita alegria ver recuperada a casa de Mily Possoz [será que esta gente dois serviços alguma vez ouviu falar dela?...], outra grande mas esquecida artista, que morreu em Sintra em 1967. Era sua vizinha. Se for necessário, podem contar comigo para lá ir indicar onde fica.

Cá por mim, à guisa de pessoal celebração, mal acabe de escrever este texto, tenho preparado o leitor de CD para ouvir o Acto III de Götterdämmerung (Crepúsculo dos Deuses) de Richard Wagner. Vou escutar este sublime momento da ópera, sob direcção e na leitura de Sir Georg Solti, 1973, dirigindo a Filarmónica de Viena, em que Birgit Nilson, Wolfgang Windgassen, Dietrich Fischer-Dieskau, Christa Ludwig Luccia Popp, e Gwyneth Jones assumem, respectivamente, as personagens de Brünnhilde, Siegfried, Gunther, Waltraute, Woglinde e Wellgunde.

O Bartolomeu tinha esta versão em lugar altíssimo. Para mim, constitui referência máxima. Neste ramalhete das maiores estrelas, há interpretações inultrapassáveis, perfeitamente paradigmáticas, intemporais. Ah, vou acompanhar a audição bebendo um Collares que, pois claro, já está aberto, já foi provado e aprovado. E tenho a certeza de que o Bartolomeu também aprovará esta minha celebração da Vida, da Arte e da Cultura (maiúsculas, à alemã…) com um copo do nosso melhor vinho.

À nossa querida Sintra! Até já, Bartolomeu…

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010


Sócrates
na corda bamba



Da esquerda, ao centro e à direita, não há sério comentador que não chegue sempre à mesma conclusão, ou seja, de que a credibilidade do Primeiro Ministro está inequivocamente ferida. A ser verdade, tudo quanto para aí se diz que José Sócrates terá feito, tão só no que se relaciona com o controlo de órgãos da comunicação social, estaremos perante um cenário de gravidade seríssima na medida em que estão em causa os valores e princípios mais caros ao Estado Democrático de Direito.

A ser verdade, fica às claras como, ao mais alto nível, se tem processado a promiscuidade entre o poder político e os mais baixos interesses do vil metal, em prol do controlo dos media, não importa a que custo, passando por cima de quem for necessário, pondo em causa um dos pilares mais importantes da república e da própria democracia, isto é, a própria Liberdade.*

Terá, de facto, este homem mentido no Parlamento? Estaria, de facto, este homem ao corrente das eventuais manigâncias do tal Rui Pedro Soares, afins da aquisição da TVI através da PT? Terá sido este o homem que, publicamente, no restaurante do hotel em que tudo se terá passado, desceu ao ponto de comentar em termos pejorativos a prestação profissional de Mário Crespo, o mais prestigiado dos pivôs de toda a televisão nacional, dando a entender que era um problema a resolver?

Tudo isto, a ter acontecido, é perfeitamente surreal. Acreditem ou não, ainda não consegui encaixar. Como? Depois de 25 de Abril, ainda parece um pesadelo. Tenho idade suficiente para ter vivido, quase trinta anos, antes da recuperação do regime democrático. E tudo isto cheira a antigamente… É escusado atenuar, suavizar, dourar a pílula porque, coisa assim, não, coisa assim ainda não tinha acontecido nos últimos trinta e cinco anos. Nem no tempo do ridículo governo de Santana Lopes.

Há apenas uma pessoa que pode – e deve – esclarecer este quadro de cloaca imunda para onde, imparavelmente, está a resvalar a vida política nacional. Naturalmente, é o próprio Primeiro-Ministro. Ele tem de afirmar e demonstrar que jamais teve qualquer relação com os factos vindos a público, nomeadamente com aquela manobra inqualificável, protagonizada pelo boy colocado no Conselho de Administração da PT como representante dos interesses do Estado.**

As últimas eleições legislativas determinaram que o Secretário-Geral do partido que obteve a maioria dos votos tivesse sido investido no mais alto cargo do poder executivo. E, para o exercício prático e quotidiano desse poder, que o povo nele delegou através do voto, este homem jurou, por sua honra, que cumpriria com lealdade as funções em que doravante concretizaria, aliás, na sequência do que já vinha fazendo há quatro anos.

Ora bem, esse juramento, que nem em Portugal nem em qualquer Estado Democrático de Direito é entendido como mera formalidade, pode ser tudo o que se quiser interpretar mas, muita atenção, sempre num contexto de dignidade, de moral irrepreensível, de honestidade a toda a prova. Para que assim possa ser, em especial depois da teia de contradições em que o Primeiro-Ministro se deixou enredar, não há outra solução: só ele próprio, repito, poderá e deverá esclarecer. Por muito doloroso que seja.

Estamos perplexos. Estamos à espera dos esclarecimentos que se impõem. Determina-o o ainda vigente regular funcionamento das instituições democráticas. A partir do Largo do Rato, foi estrategicamente montada uma cortina de silêncio cujos efeitos, até ao momento, não podiam ter sido piores. Sócrates tem de a romper. Há contas a dar. Há uma dignidade a recuperar. Portugal merece e exige.

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Em Portugal, por enquanto, está em causa não a Liberdade e, em especial a liberdade de expressão, mas todo um clima que enquinou a vida política e as atitudes de alguns actores políticos qualificados que podem condicioná-la. São coisas diferentes que carecem da devida distinção.

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Tal como Ana Gomes, também eu me interrogo acerca da condição de socialista (?) deste piqueno que, a título de vencimentos, ganha mais dinheiro, apenas num ano, do que um diplomata, sempre colocado nos mais altos postos da carreira, durante toda a vida… Por outro lado, como ninguém acredita que aquele militante socialista tivesse actuado por conta própria, conviria esclarecer quem terá patrocinado a sua atitude, em articulação com Paulo Penedos, com o intuito de adquirir a TVI. Se assim não for, para além de Henrique Granadeiro, haverá milhões de portugueses encornados...






sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Polis, res publica
e ameaças à República


Uma reflexão, mesmo muito curta e rápida, acerca do momento de turbulência que vivemos.

Convém a determinadas pessoas propalar a ideia de que, só manobras afins da quebra do segredo de justiça, permitiram que tivéssemos tomado conhecimento de práticas que desqualificam e desacreditam José Sócrates, a vida política em geral e a própria democracia. Mas, por exemplo, Ricardo Sá Fernandes, figura pública e isenta de jurista, a quem estou ligado por especiais laços de fraternidade, afirma que tal não é o caso, no que se refere às escutas publicadas há oito dias por conhecido semanário (e hoje mesmo, acrescento eu, porque, afinal, apenas continua a mesma atitude de transcrição).


Todavia, no momento presente, pouco interessa dirimir argumentos quanto ao modo, mais ou menos ínvio, como soubemos dos sérios problemas que afectam José Sócrates. Às suas costas, acabámos por conhecer, em relativamente pouco tempo, tem ele um complicado e quase interminável processo, recheado de episódios, em que um sinuoso percurso pessoal, com particulares incidências nos domínios académico e profissional, está indissociavelmente conotado com uma catadupa de casos, em que se terá envolvido, já como destacado membro de executivos governamentais, como Secretário de Estado, Ministro e Primeiro-Ministro.

Originário de uma difusa classe política, com dificuldade na definição de parâmetros de enquadramento (lembremos que, inicialmente, até esteve afecto ao PSD) e de um grupo de indivíduos cuja desmedida ambição, só é comparável à sua proverbial falta de lastro ideológico – circunstância, aliás, inicialmente sublinhada por destacadas figuras do Partido Socialista – este homem desceu à cidade convencido de que a polis e a res publica não ultrapassariam os desafios do momento sem os seus préstimos.

Como tantas vezes acontece, ao ponto de se tornar numa remake de modelos que remontam à tragédia clássica, esta figura, que se proclamava da redenção, acabou por se precipitar num tal torvelinho de contradições, que vai acabar mal, como já afirmou Marcelo Rebelo de Sousa. E vai acabar mal porque é incapaz, não estará em condições de reconhecer como, ele próprio, se transformou num obstáculo à resolução de problemas dificílimos que a polis e a res publica enfrentam, alguns decorrentes das suas próprias deficiências como decisor político.

O Partido Socialista tem toda a legitimidade democrática para governar. Impor-se-ia, antes que outrem o venha determinar – na medida em que se tal vier a suceder, revelaria um insustentável agudizar da situação – que o PS resolvesse o gravíssimo problema que tem entre mãos, ou seja, o da urgente substituição de um Secretário-Geral e actual Primeiro-Ministro que deu com os burrinhos na água, em toda a linha, e numa tal dimensão que é difícil fazer pior.

O descrédito e o desânimo estão de tal modo instalados que urge actuar, inclusive, numa perspectiva pedagógica. Há que recolocar a actividade política no patamar de dignidade donde nunca deveria ter sido arredada. Exigimo-lo nós e, em especial, os jovens que, se formos eficientes na denúncia, devem repudiar estes modelos tão polémicos de fazer política.

Faz cem anos a República. Que belíssima altura para comemorar a instauração do regime republicano de um modo que, neste momento, em função de circunstâncias tão adversas, só o Partido Socialista pode protagonizar! Assim haja coragem de o concretizar.





quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Nós por cá

(a pretexto da programação de cinema do CC Olga Cadaval)


Bem cedo, como poderão verificar, no espaço reservado aos comentários, já tinha uma mensagem subscrita por um colega e amigo de muitos anos, que ontem encontrei na Gulbenkian, a quem sugeri que visitasse o blogue, através do qual comecei a dar conta das minhas impressões sobre a Mozartwoche de Salzburg, cidade donde regressei há poucos dias, depois de umas semanas de permanência para o festival e outras actividades culturais.

Afinal, não se pronunciou ele acerca do primeiro evento a que me referi, uma récita da ópera Idomeneo, mas a um texto sobre o abismo cultural que separa a oferta cultural de Sintra e de Cascais, no qual, anteontem, aludi à programação de cinema do Centro Cultural Olga Cadaval. Espero que, depois de lerem estas linhas, concordarão comigo no sentido de que, só na aparência, o tal comentário do meu amigo Jorge Reis se refere ao estafado fenómeno do nepotismo.

Estou em crer que, de facto, não se trata apenas de galopante sobrinhismo que, então, no campo da cultura é uma verdadeira vergonha. Há outras razões e uma das que mais afecta a qualidade de vida dos portugueses, minando os alicerces da democracia e prejudicando a grande maioria dos serviços à comunidade, passa pela proverbial cultura do desleixo que, primorosamente, se articula com a fura vidas propensão do cidadão comum para a habilidade, para o remendo ordinário, porque o que é preciso é safar

Ora bem, como no lugar certo acaba por não estar a pessoa certa e, como a pessoa errada, na maior parte dos casos, obedece ao «virtuoso quadro» que acabo de caracterizar, o resultado é o que se vê, não só na manta de retalhos, bem patente no cartaz do Olga Cadaval* – apenas mera insignificância no todo local e nacional – mas também um pouco (ou muito) por toda aparte, como se tem visto, tão recentemente, ao mais alto nível do poder central. Olhem que o fenómeno é exactamente o mesmo…

Sim, porque casos como o da programação cultural da Câmara Municipal de Cascais que a Sociedade Portuguesa de Autores muito bem soube distinguir e premiar, são absolutamente excepcionais. Em Sintra, em particular, e em Portugal, na generalidade, o que impera é um atavismo poucochinho, pobrete mas alegrete, do deixa andar que isso ó pois


PS



A propósito, não consigo deixar de relacionar toda esta compósita bomba sócio-cultural, esta caldeirada que tão bem conhecemos, com uma zona do mundo onde, a vida comunitária, a própria democracia, quando se afirma existir, é tão parecida com a nossa. Por lá, constantemente, afluem desgraças que, só na aparência, estão longe de nós. Pois é, na América do Sul, por acaso, onde se fala português e castelhano. Claro que não é por acaso. No domínio da exportação de matriz identitária tão sui generis, nós, os ibéricos, fomos inultrapassáveis…

* O melhor é ler o texto precedente, aqui publicado na 3ª feira, 9 do corrente.




terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Sintra e Cascais,
um cultural abismo


Com o Centro Cultural Olga Cadaval mesmo defronte de casa não tenho mesmo por onde escapar à vista do grande cartaz parietal com a programação para os tempos mais próximos. Salta à vista que, por ali, os recursos financeiros devem ser escassíssimos. Assim mesmo, no entanto, é provável que, coitados, até pudessem fazer um pouco melhor, para que não se evidenciasse uma tão sintomática manta de retalhos…

De facto, até para não me aborrecer, não deveria entrar em detalhes. De qualquer modo, pelo menos, não consigo alhear-me do que se depreende da programação de cinema. Tal como acontece com o Festival de Sintra – infelizmente tão desacreditado e descaracterizado nas últimas edições – não se percebe a que lógica obedece o conjunto dos filmes a apresentar. Naquela casa, insiste-se em fazer coisas desgarradas, sem coerência, sem lógica implícita ou explícita.

E, neste caso do cinema, o meu desgosto é tanto maior quanto, no passado mais ou menos recente, mas sem qualquer resultado, tentei colaborar no sentido de solicitar ao saudoso João Bénard da Costa uma articulação com a Cinemateca para a organização de ciclos temáticos de cinema. Maria Nobre Franco, ex-directora do Sintra Museu de Arte Moderna-Colecção Berardo, Ana Maria e Margarida Bénard da Costa, respectivamente, mulher e irmã do então Presidente da Cinemateca, envolveram-se nos contactos mas, como soe dizer-se, tudo ficou em águas de bacalhau o que, aliás, é coisa bem comum em Sintra.

E por aqui me fico, mas solidário com o meu amigo Mário João Machado que, na administração da SintraQuorum, sempre se bate para que as coisas tenham a melhor qualidade possível. Se dele dependesse a final resolução de alguns reparos que subscrevo, tenho a certeza de que outro galo cantaria…

Naturalmente, a oferta cultural de Sintra não se esgota no que acontece no Olga Cadaval. No entanto, neste domínio da cultura, nada de significativo se regista em Sintra, com real impacto cultural, tanto a nível local como nacional e internacional, a exemplo do que, aqui tão perto, sucede em Cascais.

E, atestando o que acabo de afirmar, ontem mesmo, no Centro Cultural de Belém, a Sociedade Portuguesa de Autores atribuiu à Câmara Municipal de Cascais o prémio para a melhor programação cultural autárquica. Nem sequer sabia que havia um prémio para o efeito mas, a existir, de facto, a Câmara Municipal de Cascais merece-o. E, tanto assim é em Portugal, quanto mais se tiver em conta a generalizada indigência.

Quem acompanha a publicação de textos neste blogue não se surpreenderá com o meu regozijo. Na abordagem comparativa do que se faz por lá e por cá, em Sintra, não sei quantas vezes tenho sublinhado a excelência de Cascais. Parece que vivemos em países diferentes. E o que mais dói é que à medida que Cascais atinge patamares cada vez mais altos de gabarito, Sintra apouca-se.

Não é para admirar. Vão perdoar que me cite a mim próprio e transcreva um excerto de um texto subordinado ao título Cascais, tão perto, tão longe, aqui publicado em 25 de Agosto do ano passado:

“(…)
No campo cultural, confrange a comparação com Sintra. Em tempo oportuno, foi determinante a acção de José Jorge Letria como Vereador da Cultura. Com ele, multifacetado homem de cultura, Cascais mudou, avançou para onde devia uma terra com as suas características, perto da metrópole, em íntima articulação com a metrópole, enquanto Sintra estagnou. De Sintra, nem será bom lembrar a quem tem estado entregue a Cultura...


Faz-se em Cascais do melhor teatro do país. A novel Orquestra de Câmara de Cascais está alcançando um nível que não escapa ao interesse e curiosidade dos melómanos. Por outro lado, mas em domínio afim, enquanto entre nós, definha e já está em estertor o Festival de Sintra, em Cascais cada vez maior é o sucesso do Festival de Música do Estoril e, inclusive, multiplicam-se as provas de reconhecimento internacional como a mais recente, da União Europeia, para já não falar do conceituadíssimo Festival de Jazz.

No que respeita os museus e animação cultural, lembremos apenas o Centro Cultural de Cascais, a Casa Verdades de Faria (Museu da Música Portuguesa), Fábrica da Pólvora, Espaço Memória de Exílios, Museu dos Condes Castro Guimarães, Museu do Mar, Museu do Automóvel Antigo, para além de todo o dispositivo de espectáculos e actividades culturais dependentes do Casino, do Centro de Congressos, de grandes hotéis que promovem eventos culturais, etc, etc..

E, agora, para que a inveja ainda seja maior, então não é que vão inaugurar, já em Setembro, a Casa das Histórias, ou seja, o Museu Paula Rego, com projecto do Arq. Souto Moura e que, indubitavelmente, vai constituir um pólo de atracção cultural de primeiríssima ordem e categoria, tanto a nível nacional como internacional? Pois ainda bem! E, melhor ainda, porque Cascais fica tão perto…

António d’Orey Capucho, Presidente da Câmara Municipal de Cascais e Conselheiro de Estado, com a sua postura de elegante descrição, vai acrescentando obra atrás de obra, sem alarido e sem a mínima transigência ao mau gosto, sem qualquer ponta de evidência ou notoriedade popularucha. É um homem respeitado, cuja futebolística preferência desconheço e que, tanto quanto me parece, é coisa que nem sequer faz parte do seu currículo oculto. (…)”

E, naquela altura, ainda não tinha acontecido o Festival de Cinema que foi um evento de impacto verdadeiramente mundial! Enfim, bem pôde António Capucho dizer o que ontem disse no Centro Cultural de Belém, sublinhando o excepcional trabalho dos funcionários do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Cascais e o facto de tanto se orgulharem da sua condição de funcionários públicos…

Que maravilha! E estava lá, no grande auditório do CCB, uma boa representação do pessoal da Cultura da Câmara de Cascais, gente feliz e comovida, em total sintonia com as palavras de um presidente que, na verdade é um caso muito sério.

Tenham santa paciência!... Então não acham que são inevitáveis as comparações? Então, naturalmente feliz com o que se passa em Cascais – aqui tão perto, permitindo-me sempre usufruir da sua oferta – não hei-de ficar, também naturalmente, tão frustrado por aqui, em Sintra, não se passar da cepa torta
?



Regresso de Salzburg (2)


Se ainda não se aperceberam, pois fiquem sabendo que as minhas notas ainda têm muito pano para mangas. Hoje, por exemplo, apenas me referirei a uma de duas récitas de ópera a que assisti. Confirmo que estas linhas se destinam, em especial, aos meus amigos melómanos, pelo que não preciso descer a pormenores de enquadramento porque sabem tanto ou mais do que eu. Outros capítulos se seguirão em próximos dias o que, entretanto, me não me vai impedir, como hoje mesmo já vai acontecer, de publicar textos de outra índole.

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Primeira grande referência para Idomeneo, enquanto produção de ópera, no palco, não versão de concerto como, há vários anos, tem vindo a acontecer, que esteve no centro da Mozartwoche 2010, pelos Musiciens du Louvre-Grenoble, sob a direcção de Marc Minkowski. Quem, como eu, os acompanhou em anteriores edições deste festival de Inverno, tem podido constatar o caminho que têm feito em prol da conquista de um inquestionável lugar entre os melhores intérpretes de obras de Mozart.

Este agrupamento apresentou-se várias vezes em Salzburg em anos recentes. Mas sempre em concerto. Faltava esta prova de fogo, de uma ópera, perante esta grande Meca da música, cujo público, mais tarde, em oportuna troca de impressões, o próprio Minkowsky classificou como o mais temido e exigente, o mais sabedor e respeitado pelos músicos de todo o mundo.

Esta Idomeneo de Salzburg, que é também uma co-produção da International Stiftung Mozarteum com o Festival International d’Art Lyrique d’Aix-en-Provence e Musikfest Bremen, foi encenada por Olivier Py, sendo os cenários e figurinos da autoria de Pierre-André Weitz. Olivier Py é um encenador, actor, autor e director artístico do prestigiado Théâtre de l’Odéon de Paris. Tem dirigido ópera em Genève, Paris e Moscovo e as suas propostas, que não deixam ninguém indiferente, costumam suscitar fortes reacções, enorme entusiasmo e aclamação geral.

O mínimo que posso garantir é que se tratou de algo absolutamente fulgurante. Uma leitura e visão modernas do plot, servidas por dispositivo cénico extremamente bem adequado, com grandes construções metálicas que permitiam a exploração de ângulos de abordagem menos visitados, ao serviço de um perspectiva psicanalítica das relações entre o pai-rei e o filho, prestes a ser imolado como vítima de uma cerimónia sacrificial, filho esse que é elo de uma estratégia de poder. E o poder político nunca é ilimitado, sejam quais forem as circunstâncias de tempo e de lugar.

Ao contrário do que é prática corrente na montagem desta ópera, não há personagens masculinas interpretadas por vozes femininas – qual reminiscência dos famosos cantores castrati (quando Mozart estriou esta ópera em Munique, entregou o papel de Idamante ao castrato Vincenzo dal Prato, sobre quem, aliás, fez os comentários menos simpáticos, acabando por ter de lhe ensinar tudo…) – pelo que tivemos, nem mais nem menos do que três tenores em palco, Richard Croft, Idomeneo, Yann Beuron, Idamante e Julien Behr, Arbace, todos em óptimas prestações, com especial destaque para o protagonista que confirmou a enorme expectativa para este desempenho.

Mireille Delunsch fez anunciar que tinha a voz afectada por um ameaço de constipação. Muitas vezes, tais avisos não correspondem à verdade da situação e revelam, isso sim, um natural receio pela responsabilidade de cantar em Salzburg. De facto, o seu desempenho na Elettra não foi nada de excepcional mas, enfim, esteve muito longe de estragar a récita. Melhor esteve Sophie Karthäuser em Ília, com uma fina e sofisticada colloratura, muito afim de todas as modulações mozartianas que o papel pressupõe.

Músicos fabulosos, uma direcção irrepreensível. A componente balética da ópera, reminiscência da prática francesa, foi preenchida de forma inexcedível, ao som de uma música que passa por ser das melhores da lavra de Amadé. Um espanto! Na Mozartwoche havia duas récitas desta ópera e, como não podia deixar de ser, assisti a ambas. Confirmei como Les Musiciens du Louvre-Grenoble e Marc MinKowski são expoentes de máxima grandeza na interpretação do repertório mozartiano, referências inconfundíveis e, para mim, tão imperdíveis como o Concentus Musicus Wien, com Harnoncourt, por exemplo.


(continua)

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Regresso de Salzburg

Preâmbulo

1. A decepção

Mal chego ao aeroporto e compro o Público de hoje, logo fico identificado. Na diagonal, leio o texto de Vasco Pulido Valente intitulado Um homem perigoso, ilustrado com a fotografia de José Sócrates, e percebo que, apesar de esclarecedor, ainda preciso de ler mais umas coisas para me pôr em dia.

Já em casa, com um pouco mais de delongas e cuidados, acedo aos jornais que a minha mulher tinha guardado durante a ausência. Fico a saber do descalabro que confirma o atoleiro de trampa em que quase nos afogamos. Que nojo! Envergonho-me com o ataque do Primeiro Ministro a Mário Crespo. Não tenho palavras para qualificar o tal plano para silenciar as vozes incómodas da comunicação social, plano constante das escutas publicados por O Sol – legalmente publicadas, segundo a insuspeita opinião de Ricardo Sá Fernandes, advogado de Paulo Penedos – e fico absolutamente desconcertado com a crise suscitada pela discussão e aprovação da Lei das Finanças Regionais.

Prossigo e só tenho vontade de regressar para onde tão bem estive. Mais do que costuma acontecer-me, sempre que volto de lugares menos poluídos por fenómenos que tais, apetece-me sair de vez, mas com a família atrás, que isto está a tornar-se perfeitamente irrespirável. Não me recordo de termos um governo e um Primeiro Ministro tão debilitados, tão desacreditados. Mas o mal não vem só de uma banda. É toda uma medíocre classe política que demonstra à saciedade, como é, continua e faz gala em ser reles. Fico com a ideia e a imagem do estertor em curso, que não prenuncia nada de auspicioso.

Cada vez mais, maior é a preocupação que sinto em relação ao futuro colectivo. Cada vez mais, maior a gratidão pela educação que recebi, no respeito por valores que pensei só poderem ser exaltados e enaltecidos depois de recuperada a democracia, com a possibilidade de todos fazerem render as suas capacidades, independentemente do berço de nascimento. Como me enganei! Meu Deus, como nos enganámos!

2. Uma questão de família

Fui a 17 do mês passado e voltei hoje de Salzburg. Todos os anos ali passo umas semanas, nomeadamente no Inverno, por altura da Mozartwoche, entre fins de Janeiro e primeira semana de Fevereiro – sempre a coincidir com o aniversário de Mozart, em 27 de Janeiro – e também durante o Festival da Páscoa, sempre com a Orquestra Filarmónica de Berlin, durante a semana santa.

Trata-se de dois momentos cruciais da vida da cidade, concentrando um grande número de eventos musicais do mais alto nível mundial que, de facto, muito ultrapassam os limites da Música para, lato senso, se evidenciarem como grandes acontecimentos culturais. E, como não podia deixar de acontecer, igualmente se trata de dois momentos importantes da minha actividade anual.

Deixem-me referir que, desde miúdo, me habituei à frequência dos melhores festivais de música. E isso, muito naturalmente, devo ao meu pai, com quem viajei muito por toda a Europa, em especial por causa dos festivais de música de Lucerna, da ópera de Wagner em Bayreuth, ou de Verona onde, com maior informalidade, ia à arena assistir a récitas de ópera de vários compositores, com maior destaque para Verdi. E esta prática, logo tratei de passar às minhas filhas que, há trinta anos, ainda na infância, já andavam nesta vida comigo e com minha mulher.

Pertenço a uma família de gente com grande interesse pela música erudita. O meu pai e uma das minhas tias tinham o curso superior de violino do Conservatório, outra tia, os de piano e harpa. O meu avô paterno tocava piano excelentemente, a avó cantava. Com estes antecedentes, é natural que me tivesse tornado num melómano inveterado, cujos recursos, destinados a actividades culturais, estão quase exclusivamente afectos à frequência da grande música, cá e lá fora.

De facto, Salzburg é um dos lugares onde, como já afirmei, passo os meus melhores momentos de vivência cultural de todo o ano. Certo é que, ainda em 2010, lá voltarei e também a Bayreuth, em Agosto. É natural que aguarde estas semanas com muita expectativa e que as aproveite para um enriquecimento que muito ultrapassa a frequência dos concertos, recitais, ópera, missas, bailado, teatro, cinema, etc.

Na realidade, é nestes períodos que me actualizo, por exemplo, em consultas na Fundação Internacional do Mozarteum, uma instituição do maior prestígio internacional de que me orgulho de pertencer como membro efectivo, cuja Biblioteca Mozartiana é verdadeiramente preciosa. É nestes períodos que frequento conferências, pequenos cursos e seminários, em que contacto com gente fantástica, como agora acaba de acontecer, com o grande compositor húngaro György Kurtág e Martha, sua mulher.

Impressões do festival


Pois bem, depois desta introdução um pouco mais pessoal, dirijo-me, já de seguida, aos meus muitos leitores e amigos melómanos que, durante anos e anos, se habituaram a ter notícias de Salzburg, através do meu testemunho, que o saudoso Jornal de Sintra costumava publicar – vejam lá como estas coisas são – em exclusivo nacional e, naturalmente, em colaboração absolutamente graciosa!...


(continua)