[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sexta-feira, 28 de março de 2014



Sintra,
Palácio de Queluz
22 de Março
 

Temporada de Música 'Tempestade e Galanterie' [V]
 


Não, não se trata nem de Einführungsvortrag nem de Künstlergespräch.
Massimo Mazzeo, pura e simplesmente, não resiste em beneficiar-nos com notas pertinentes acerca das peças, dos músicos, dos instrumentos, apontamentos de História da Música afins dos programas. E fá-lo, umas vezes, antes da função, outras, durante o intervalo, ainda outras, em ambas as circunstâncias. E, sempre, com uma informalidade, simpatia, empenho que cumpre destacar. Para ele, alma mater da iniciativa, seu Director Artístico, os mais sinceros parabéns e um abraço caloroso
 
 
Credits_PSML Jonas Tavares


Sintra,
Palácio de Queluz
22 de Março


 
Temporada de Música 'Tempestade e Galanterie' [IV]

 
 
É, é ele, o famoso Clementi de Queluz. Se vê-lo é precioso, ouvi-lo soar não tem descrição...
 
 
Credits_PSML Jonas Tavares
 
 
 


 
 
Sintra,
Palácio de Queluz
22 de Março


Temporada de Música 'Tempestade e Galanterie' [III]
 
 
Como podem constatar, a sala chea. Músicos excepcionais, ambiente formidável, do melhor que se pode partilhar. Um verdadeiro privilégio.
 
 
Credits_PSML Jonas Tavares
 
 
 


Sintra,
Palácio de Queluz
22 de Março

Temporada de Música 'Tempestade e Galanterie' [II]
 

Alexander Lonquich ao teclado do «nosso» magnífico pianoforte 'Clementi' e Christophe Coin, no seu espantoso [que graves!!...] violoncelo C.A. Testore, Millano 1758. Que instrumentos! Que excepcionais artistas, no momento registado pela foto, interpretando a Sonata para Violoncelo No. 3, op. 69 de Beethoven. Um concílio de semideuses...
 
 
Credits_PSML Jonas Tavares
 
 
 
 


Sintra,
Quarteirão das artes


Texto de João Cachado publicado no Jornal de Sintra,
ed. 4020 de 28 de Março de 2014.

Brevemente disponível em www.jornaldesintra.com


 
 
 

Música para dois génios
 
 
"Mozart's music is so pure and beautiful that I see it as a reflection of the inner beauty of the universe"

Albert Einstein

 
 
A tocar a Sonata em Si bemol de Mozart. Sem palavras, ou melhor: simplesmente magnífico.
 
 


Sintra,
Palácio de Queluz
22 de Março


 
Temporada de Música 'Tempestade e Galanterie' [I]


Outro serão memorável. Tenho saído verdadeiramente encantado de cada um dos eventos. Este primeiro ciclo da Temporada "Tempestade e Galanterie" não poderia registar maior sucesso. E ainda faltam dois concertos, na sexta e no sábado, dias 28 e 29.

Graças a Deus a sala tem estado sempre cheia ou quase. Mesmo assim, tenho pena de que não apareçam alguns dos meus conhecidos que se consideram melómanos... Que diabo de melómanos se permitem desperdiçar oportunidades, como estas de Queluz, de assistirem a recitais e concertos da melhor música setecentista pelos melhores intérpretes do mundo?

Enfim, de facto, «ele» há gente para tudo!...
 
 
 
 
Credits_PSML Jonas Tavares

quinta-feira, 27 de março de 2014



Teatro
sentenças de Pirandello



Hoje, a propósito do dia que se celebra, lembrei-me de Pirandello e, naturalmente, de "Seis Personagens à procura de Autor", peça que é uma das melhores fontes de sentenças sobre o universo teatral.

Apenas três referências.


 "(...) Todo o fantasma, toda a criatura de arte, para existir, deve ter o seu drama, ou seja, um drama do qual seja personagem e pelo qual é personagem. O drama é a razão de ser da personagem, a sua função vital, indispensável à sua existência. (...)"

"(...) Quando nasce, uma personagem adquire uma tal e imediata independência, inclusive do próprio autor, que todos a podem imaginar em situações que ele jamais pensou enquadrá-la, e, por vezes, até pode adquirir um significado que o autor jamais sonhou atribuir-lhe! (...)"

"(...) Quem tem a sorte de nascer personagem vivo, até da morte pode rir. Não morre mais... Quem era Sancho Pança? Quem era Don Abbondio? E, no entanto, vivem eternamente, pois - vivos embriões - tiveram a sorte de encontrar uma matriz fecunda, uma fantasia que soube criá-los, alimentá-los, fazendo com que vivam para a eternidade! (...)"


O sortilégio desta obra é bem conhecido. A sua representação tem constituído um imenso desafio para encenadores, actores, companhias, técnicos das mais diferentes áreas. Claro que, aqui tendo chegado, não poderia senão propor-vos esta versão da famosa Compagnia dei Giovani, sob a direcção do mítico Giorgio de Lullo (1921 – 1981), ele que foi responsável pela encenação das obras principais de Pirandello, dentre as quais, Sei personaggi in cerca d'autore, Il giuoco delle parti ou Enrico IV.

Deixo-vos com um excerto [I] da peça. Cerca de um quarto de hora de puro gozo da arte de representar. Tenho a certeza de que ficarão cativos. Já a pensar naqueles que gostarão de assistir à representação da peça na totalidade, precisamente por esta mesma companhia, também vos deixo o comando [II] para o efeito.

 É, de facto, a grande festa do Teatro!


http://youtu.be/7OU9gwYDmtg [I]  excerto
http://youtu.be/cEhP2a8I4Ok     [II] peça completa



Gulbenkian,
Terça-feira, 1 de Abril, 21.00


Quartett, Ópera encenada

Luca Francesconi
Produção: Teatro alla Scala, Milão


Passo a transcrever a informação colhida no Almanaque Gulbenkian da temporada 2013/14 referente ao próximo evento:

"A partir de uma leitura muito pessoal do famoso romance Les Liaisons Dangereuses, de Choderlos de Laclos, por parte do imprevisível dramaturgo alemão Heiner Müller, Luca Francesconi compôs uma ópera ambiciosa estreada em 2011 no Scala de Milão. A singularidade e contemporaneidade da proposta ficou então nas mãos da direção artística de Àlex Ollé (da companhia de teatro catalã La Fura dels Baus) e da maestrina Susanna Mälkki. «É a denúncia de um mundo ocidental que pretende resolver tudo com o controlo aparente sobre todas as coisas», resume Francesconi."


Eis a ficha do espectáculo:

ORQUESTRA GULBENKIAN
SUSANNA MÄLKKI (maestrina)
ALLISON COOK (meio-soprano) (Marquesa de Merteuil)
ROBIN ADAMS (barítono) (Visconde de Valmont)
ÀLEX OLLÉ (La Fur a Dels Baus, encenador)
MAGALI RUELLE (diretora da reposição da encenação)
ALFONS FLORES (cenógrafo)
FRANC ALEU (vídeo)
LLUC CASTELLS (figurinista)
MARCO FILIBECK (desenho de luz)
SERGE LEMOUTON (desenho informático de som — Ircam)
JULIEN ALÉONARD (gravação, edição e mistura do coro e da orquestra no Teatro alla Scala)



Como é possível fazê-lo, não há como dar voz ao compositor sumariando as linhas de força da sua proposta, num excerto de entrevista que concedeu antes da estreia da ópera.

http://youtu.be/zo_CWL7Tl30


 

quarta-feira, 26 de março de 2014


À la Recherche du Temps Perdu


Emocionante, de facto, este documento. Chega-nos de um tempo que, para todos os efeitos, ainda não estará «perdido»... A comprová-lo a actual atitude, um pouco por todas as latitudes, de certos autores e respectivos editores, cansados da facilitadora aridez do 'word', estarem voltando a este caminho do sangue, suor e lágrimas vertidos nas folhas de manuscritos que, a montante da obra acabada, são testemunho da luta da criação literária.

 Em busca do tempo perdido? Não, não me parece que se trate de um movimento de incorrigíveis nostálgicos, signatários de um qualquer militante revivalismo. Provavelmente, uma opção pelo retorno à «verdade» de uma solução de escrita cujo instrumento de concretização fica entre os dedos da mão, físico elemento de um processo sob o comando do mesmo cérebro que concebe o texto, em sucessivas etapas, tantas quantas as necessárias - ali, bem testemunhadas no papel! - até àquela que o autor considera definitiva.

Um manuscrito como este? É um autêntico espectáculo em que o autor exibe as entranhas, deixando escancarado o caminho que o levou àquele artefacto, na sua caligrafia, com as hesitações, as várias opções, evidenciando o que arriscou, portanto, tudo o que fez e como o fez. Temos pena mas isso o 'word' não permite...



Emozionante.

Due pagine, con la macchia di inchiostro, del manoscritto di "À la Recherche du Temps Perdu" compilato da Marcel Proust tra il 1909 e il 1922.
 
— com Anna Rens e Giovanni
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Foto: Emozionante. 
Due pagine, con la macchia di inchiostro, del manoscritto di "À la Recherche du Temps Perdu" compilato da Marcel Proust tra il 1909 e il 1922. 

 

 

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terça-feira, 25 de março de 2014



Ah, Sintra, Sintra,
para quando o funicular?
 


No dia em que, passados 132 anos, se comemora a inauguração do funicular do Bom Jesus de Braga – nem mais nem menos que o primeiro da Península Ibérica! – não desisto de propor a concretização da mesma solução em Sintra, para acesso aos pontos altos da Serra.

Hoje em dia, em especial por razões ecológicas, cada vez mais se impõe a adopção deste meio de transporte na nossa terra, evitando que, aos milhares, as viaturas particulares continuem indo serra acima, poluindo descaradamente e, inclusive, com a nossa escandalosa permissividade, podendo estacionar praticamente «em cima» do mais sofisticado património natural e edificado…

Naturalmente, tal medida teria de se conjugar com a da civilizada arrumação dos automóveis e autocarros de turismo em parques estrategicamente instalados na periferia mais próxima da sede do concelho. No caso do funicular, já se chegou à conclusão de que o ideal seria a instalação de duas linhas, uma a partir da Ribeira com destino à Pena e outra com base em Ramalhão em direcção a Santa Eufémia.

Lembro que, além de um na zona do Lourel, aqueles da Ribeira e do Ramalhão seriam os dois outros parques periféricos dissuasores da entrada de veículos na sede do concelho. Mais estudos? Só se se pretender concretizar mais alguma manobra dilatória… O mais recente, há uma dúzia de anos coordenado pelo Prof. Doutor Sidónio Pardal, que tive o privilégio de acompanhar, com outros sintrenses, num dia de trabalho de campo, apontava precisamente para este cenário.

Funicular, com música!!

Não deixa de ser curioso que o funicular, neste caso, o do acesso ao mais famoso dos vulcões italianos, tenha inspirado a composição de uma canção das mais populares a nível mundial! Tenho a certeza de que, apesar de a palavra não suscitar qualquer hipótese de confusão, na maior parte dos casos, os portugueses não identificarão o estribilho ‘funiculì, funiculà!’ coincidindo-o com o meio de transporte…

A versão que vos proponho tem a especial vantagem de servir de apoio musical a um diaporama que tem como tema a história dos meios de transporte que permitiram aos viajantes e turistas de todo o mundo - como sabem, são coisas diferentes... - visitar o Vesúvio com a maior comodidade.

Então, bom visionamento e melhor audição!
[Eis, a letra, para conveniente acesso:

Aieressera, oì Nanninè, me ne sagliette,
tu saie addò tu saie addò
 
Addò 'stu core 'ngrato cchiù dispietto
farme nun pò!
Addò lo fuoco coce, ma si fuie
te lassa sta!
E nun te corre appriesso, nun te struie,
'ncielo a guardà!...
Jammo, jammo 'ncoppa, jammo jà,
funiculì, funiculà!

Nè... jammo da la terra a la montagna! no
passo nc'è!
Se vede Francia, Proceta e la Spagna...
Io veco a tte!
Tirato co la fune, ditto 'nfatto,
'ncielo se va..
Se va comm' 'à lu viento a l'intrasatto, guè,
saglie sà!
Jammo, jammo 'ncoppa, jammo jà,
funiculì, funiculà!

Se n' 'è sagliuta, oì nè, se n' 'è sagliuta la
capa già!
È gghiuta, pò è turnata, pò è venuta...
sta sempe ccà!
La capa vota, vota, attuorno, attuorno,
attuorno a tte!
Sto core canta sempe
nu taluorno
Sposammo, oì nè!
Jammo, jammo 'ncoppa, jammo jà,
funiculì, funiculà!]
http://youtu.be/XXdK4vu82Zg
 
 


24 de Março

Enrique Granados

Em plena Primeira Guerra mundial, naquele dia de 1916, na sequência de ter sido atingido por um torpedo o navio em que seguia como passageiro, orre tragicamente o pianista e compositor Enrique Granados (n. 18
67).

Em sua homenagem, proponho que ouçamos a ópera "Goyescas", em excelente versão concertante datada de 1992, numa gravação ao vivo, a partir da fabulosa sala do Palau de la Música de Barcelona. Toca a Orquestra Ciutat de Barcelona (OCB), com as vozes solistas de Ana María González, soprano, Alicia Nafé, mezzo, Manuel Cid, tenor, Pablo Elvira, barítono, o coro Coral Càrmina. A dirigir a récita o nosso bem conhecido Maestro García Navarro.
 
 



23 de Março
Efeméride mozartiana


Honra ao herói,
música no mausoléu



Estamos no dia 23 de Março de 1791, o ano derradeiro da vida de Mozart. O Conde Joseph Deym von Stritetz (Müller], dono de uma galeria de Viena, inaugura um mausoléu em honra do célebre Barão Ernst Gideon von Laudon (1717-1790), heróico marechal de campo que se notabilizou durante as guerras dos Sete Anos e de Sucessão da Baviera.

A peça para órgão cuja audição vos proponho, o Allegro e Adagio em Fá Menor KV 594, que deu entrada no catálogo manuscrito do compositor no dia 3 do mesmo mês, terá sido ali interpretada, com toda a probabilidade, durante a primeira semana de abertura ao público.

Boa audição!

http://youtu.be/0QFc0CP13DY

sábado, 22 de março de 2014






Palácio de Queluz,
no âmbito da Tempestade e Galanterie


Esta noite, pelas 21.00, Alexander Lonquich e Christoiphe Coin, num programa que, além de peças de Carl Philipp Emanuel Bach também interpretarão as Sonatas para Violonce
lo op. 5, No. 1 em Fá Maior e a op. 69 em Lá Maior de Beethoven.

Portanto, além da partilha do documento constante do post da Parques de Sintra Monte da Lua - constante da miniatura com a foto de Lonquich - e, a título de preparação, também proponho que, da última peça mencionada no parágrafo precedente, ouçamos uma interpretação antológica por Casals e Cortot, datada de 1958, com os seguintes andamentos:

1) Allegro ma non tanto
2) Scherzo (14:18)
3) Adagio cantabile - Allegro Vivace (20:49)

Boa audição!


http://youtu.be/vs-O4_4ViWA
 

sexta-feira, 21 de março de 2014



Sokolov,
quase meio século de memórias



Há poucos minutos, preparando-me para fazer uma pequena referência ao recital de Sokolov no passado domingo, na Gulbenkian, consciencializei que muito tenho eu escrito sobre o fabuloso pianista. Curioso quanto à possibilidade de poder ter uma ideia mais precisa, fui à minha pasta de crónicas musicais, que publiquei no Jornal de Sintra durante alguns anos, e encontrei dezoito peças escritas. Reparem, não se referem a todos os recitais e concertos a que assisti com ele ao piano mas, tão somente, àqueles de que dei conta naquele jornal.

Foram concertos e recitais em Lisboa, na Gulbenkian, no Porto, em Sintra, em Mafra, em Salzburg também várias vezes... Agora, o mais interessante, foi quando comecei a tentar recuar no tempo para lembrar a primeira vez que o vi e ouvi em Lisboa. Também tive que ir aos classificadores onde guardo programas, bilhetes e tudo o mais desde 1965, ano em que entrei na Faculdade de Letras. Documentação mais recuada, graças a Deus também tenho, mas é herdada dos meus pai e avô paterno.

Lamentavelmente, não encontrei nem o programa nem bilhetes a que me pudesse ater para documentar o momento. Mas lembro-me perfeitamente e sei que foi num Concerto do Ciclo de Cultura Musical, em 1967, no Tivoli. E até me lembro que tocou os Concertos No. 2 de Saint-Saëns e No. 5, 'Imperador', de Beethoven, com a Orquestra da Emissora dirigida pelo Silva Pereira.

E o clique essencial fez-se a partir de um momento essencial da biografia de Sokolov, qual seja o do ano em que venceu o Concurso Tchaikovsky de Moscovo, aos dezasseis anos em 1966. Eu sabia que tinha sido no ano seguinte que se apresentara em Lisboa, ele que é mais novo do que eu apenas dois anos.

Nem sempre tenho estado de acordo com as suas opções. Em especial, no que se refere a algumas das Sonatas para Piano de Beethoven, permito-me divergir relativamente aos 'tempi' de determinados trechos, geralmente, nos andamentos lentos. Quer em relação ao próprio original e indicações do compositor quer tendo em consideração, por exemplo, a antológica versão da integral de Schnabel que venero em absoluto, de facto, por vezes, fico desconcertado.

Contudo, tal não significa que desgoste ou goste menos. As leituras de Sokolov podem ser discutíveis mas são sempre de um refinadíssimo recorte, esteticamente irrepreensíveis. Com Brendel e Uchida ele é um dos vértices do triângulo de ouro com o qual, em termos da pianística, mais beneficiei ao longo da vida, por onde passaram gigantes como Arrau, Kempf, Pollini, de La Rocha. Magalof, Michelangelis, Glenn Gould, etc, etc.

No recital do passado domingo esteve menos bem do que já o ouvi e vi em programa idêntico, totalmente preenchido com obras de Chopin. Claro que só comparo com recitais ao vivo. Com destaque especialíssimo, e como momento mais alto, apontaria o 'Presto non tanto - Agitato' da Sonata para Piano No. 3 em Si menor op. 58. Controlo absoluto, emoção a rodos, o romantismo chopiniano na sua expressão mais entranhada e um cansaço arrasador do qual só me refiz horas mais tarde.

Propor-vos-ei, por Sokolov, a Marche funèbre: Lento, Finale: Presto de uma gravação ao vivo, da Sonata No. 2 in Si bemol menor, Op. 35 do mesmo compositor. Se não conhecem esta sua prestação, aqui têm uma ilustração do que escrevo uns parágrafos acima acerca das suas opções.

Boa audição!

http://youtu.be/aHXkVEAjB6o


 


Salomon


A produção de uma obra como a Oratória  Salomon de G.F. Händel, é um empreendimento musical de tal modo sofisticado, dispendioso, arriscado, cheio de imponderáveis que, em Portugal, só uma estrutura organizativa como a da Fundação Calouste Gulbenkian responde a semelhante desafio.

No entanto, apesar de dispor da maioria das condições para o efeito, nomeadamente, uma orquestra e coro de excelente qualidade, e de poder contratar as melhores vozes solistas, nem sempre estão reunidos todos os factores absolutamente determinantes para que se registe um sucesso como o do concerto de ontem.

Felizmente, a partir desta temporada, com um maestro com o alto gabarito de Paul McCreesh, a Gulbenkian recupera a possibilidade de apresentar obras deste alto calibre sem arriscar resvalar para o comprometimento da qualidade parcial e total, como estava a suceder no passado recente.

Nota-se, e de que maneira, o resultado do trabalho que o Maestro McCreesh tem levado a cabo nos ensaios com a orquestra. E, de igual modo, manifestamente, a extrema preocupação com as questões da acústica, por exemplo, na distribuição dos naipes, recorrendo às mais  interessantes soluções e, de facto, conseguindo obter os melhores efeitos.

Em 'post' anterior anunciei o elenco total que assegurou o evento pelo que me dispenso de o repetir. É difícil destacar seja o que for pela positiva de tal ordem foram as prestações, com o Coro, em noite de glória, distinguido pelo público com estrondosa ovação.

O contratenor Iestyn Davies demonstrou cabalmente porque se tem revelado mais-valia e garantia de êxito nas melhores casas de música europeias e americanas. Igualmente, em alto nível Gillian Webster, Mhairi Lawson, sopranos que têm trabalhado frequentemente com McCreesh.

Um êxito que mereceria ter sido partilhado por uma lotação esgotada. Mas a casa estava muito longe disso. Em Lisboa, reportando-me apenas ao caso  da Gulbenkian, ao longo de cinquenta anos (quarenta e cinco no Grande Auditório), tenho assistido a faltas de presença tão significativas que já nem me dou ao trabalho de analisar as causas. Enfim, como já o tenho feito noutros contextos, bem posso dizer que para esse peditório...

quinta-feira, 20 de março de 2014



19 de Março
Efeméride Mozartiana
Viena, 1788


Tal como hoje, era quarta-feira, aquele dia 19 de Março de 1788 durante o qual Mozart registou no seu catálogo pessoal a seguinte entrada: "A 19, um Adagio para o piano solo, em Si menor". Mais tarde, Köchel, o famoso Cavaleiro Ludwig von Köchel, atribuiria à composição, a referência KV. 540. Em função das características da peça, marcada por evidentes sinais de pessimismo, angústia e nostalgia, bom será que tenham uma noção rel
ativamente aproximada do período em que é escrito este Adagio.

Para o compositor, o ano de 1788 é crucial e cheio de dificuldades. Ainda hoje se desconhece que preocupantes acontecimentos o terão levado a mergulhar num período de tão grande turbulência interior. Certo é que sabemos dos seus problemas de falta de dinheiro. Mas também sabemos que, senhor de rendimentos muito razoáveis, na realidade, gastava muito mais do que os proventos auferidos.

A verdade é que, ao pedir dinheiro emprestado, por exemplo, através da célebre carta a Puchberg, seu Irmão Maçon, se verga a um tal ponto que confessa estaria prestes a perder a honra. Tudo leva a crer que o atormentavam enormes dívidas de jogo. Já depois da sua morte, por outro lado, a irmã Maria Anna (Nannerl) daria a entender como Wolfgang era pessoa inábil em questões relacionadas com o vil metal.

Ao certo nunca se saberá o que estava a montante de tanta perturbação. Tenhamos em consideração que será durante escassos dois meses do Verão seguinte, que ele escreve a fabulosa tríade das derradeiras sinfonias, a penúltima das quais, em Sol menor, KV. 550, cuja simbologia remete para contextos trágicos relacionados com a morte, obra inquietante, misteriosa, a tal que levou Nikolaus Harnoncourt a mudar o curso da sua vida.

Ao longo dos anos, tenho ouvido este Adagio tocado pelos maiores pianistas vivos e também por alguns que já não estão entre nós. É importante lembrar que, no quadro geral da obra de Mozart, estamos em presença da única peça independente conhecida em Si menor, que Hutchings coloca nos píncaros.

Em Salzburg, no círculo dos meus amigos e conhecidos mais próximos, não há quem se atreva a pôr em dúvida quem, actualmente, melhor lê e interpreta esta obra, de acordo com os cânones mozartianos mais exigentes. É nesse enquadramento do máximo gabarito que, para o serviço ao «divino» Mozart – epíteto com que tantas vezes é invocado pelo MQI José Manuel Anes – convoco a melhor das intérpretes.

Como poderão verificar, desde a concentração inicial até aos mais ínfimos detalhes, Mitsuko Uchida, é a ela que recorro, parece não ter senão a matéria essencial à relação com o teclado. Como tantas vezes lhe tenho assinalado, já não é deste mundo a carga de espiritualidade etérea que afecta à interpretação o que não significa que algo fique fora do controlo físico e racional da pianista.

Finalmente vos afirmo que, sim meus senhores, tereis agora do melhor Mozart que conheço. Obra singular, a KV. 540 é verdadeira, comovente preciosidade. Apropriem-se dela na justa medida em que tal é possível. Saibam merecê-la.

Boa audição!
http://youtu.be/IPW_w68fTHA
 
 

terça-feira, 18 de março de 2014



18 de Março [I]

Malipiero?


Sim, meus amigos, Gian Francesco Malipiero (Veneza, 18 de março de 1882- Treviso, 1 de agosto de 1973), um dos mais importantes compositores italianos do século vinte, prática e injustamente desconhecido entre nós, é merecedor da maior atenção da vossa parte. Já que os grandes auditórios o mantêm num afastado do público - haverá razões de carácter ideologico-político -
eis que me proponho «programá-lo»neste mural através do qual, como sabem, também pretendo dar a conhecer obras menos divulgadas, esquecidas ou que não 'acontecem' por mera ignorância.

O que vos proponho é um conjunto de cinco documentos audiovisuais cuja partilha vos permitirá adquirir uma relativamente segura noção de que se trata de obras maiores da música do século passado. Nelas descobrirão, estou certo, afinidades declaradas com a maioria dos compositores seus contemporâneos e uma evidente originalidade em que julgo não ser necessário insistir. «Isto» é tudo menos fancaria superficial. As gravações abaixo indicadas dispõem de detalhes mínimos de descrição.

Deliciem-se com momentos de excelente recorte musical que, sendo contemporâneos, são de todos os tempos. Este é um compositor cuja oficina muito deve a seus «colegas» do barroco e do classicismo, percebe-se perfeitamente que os «frequentou» sendo exímio em verter, na sua, o filtro da obra de ilustres antepassados, assim contribuindo para que o fluxo cultural de épocas anteriores, continue plasmado nos compassos da nossa vida.

Lembro-me muito bem, há precisamente quarenta e cinco anos, tinha eu uma conversa com meu pai, em Veneza – «lugar geométrico» de Malipiero – em que tecia as maiores loas a este compositor. Fiquei muito impressionado como, na sua opinião, ele era «a» charneira, elo indispensável à compreensão do processo musical em permanente evolução, não só na Itália, mas em todo o mundo que se reclama desta espantosa herança cultural. Cada vez mais, confirmo como tinha toda a razão.

Boa audição!

1.Ricercari per 11 strumenti (1925)

http://youtu.be/ml6iulYMgpo
2.Concerto per violino e orchestra (1932)
http://youtu.be/6zIZL1rwrCM
3.Concerto per violoncello e orchestra (1937)http://youtu.be/SOHbExit0tc
4.Sinfonia n.1 (1933)http://youtu.be/uNsL-o5aXog
5.Sinfonia No.7 "delle canzoni" (1948)http://youtu.be/9tR2bZDSYYM

18 de Março [II]

Em dia de «aniversários vários» – hão-de compreender que, também no meu, a memória de meu pai esteja tão presente e, por isso, a presença de compositores que ele muito considerava. Ora, naturalmente, neste contexto de efemérides musicais, não poderia deixar de mencionar Nikolai Rimsky-Korsakov [Tikhvin, 18 de Março de 1844-Lyubensk, 21 de Junho de 1908].

Dele vos proporei uma peça tão russa como esta “Abertura Páscoa Russa”. Ortodoxa? Católica? A «passagem» que a Páscoa é, aponta-nos o caminho único, o ecuménico, no termo do qual, mais dia menos dia, nós cristãos, todos nos encontraremos. Acreditava nisto o meu pai. Eu também. Para o efeito, a Música que hoje e sempre celebro, é ingrediente essencial.
Pois bem, aí está, interpretada pela Orquestra do Mariinsky, dirigida por Gergiev, uma obra menos ouvida do aniversariante.

Boa audição!

Abertura Páscoa Russa

http://youtu.be/avonNJuWzRM
Ver mais
 
 

segunda-feira, 17 de março de 2014



A minha pátria é a língua portuguesa
- extraordinária coincidência


A propósito do uso e abuso que se faz da célebre e descontextualizada frase A minha Pátria é a Língua Poruguesa, fará 6 anos no próximo dia 18 de Abril que escrevi e publiquei no meu blogue
www.sintradoavesso.blogspot.com um texto subordinado ao título "O desconcerto da citação" que foi reproduzido no 'Jornal de Sintra', em 25 do mesmo mês e ano.

Tanto tempo passado eis que, ontem mesmo, no suplemento Revista 2 do jornal Público, Nuno Pacheco, no seu habitual espaço, desafia-nos com o texto Da Nossa Clara Língua Majestosa em que chega a ser perturbante como, em determinadas passagens, tanto coincide, não só com a opinião que eu publicara, certo é que em escrito mais longo como, inclusive, o próprio ritmo dos argumentos é semelhante.

Claro que, de modo algum, sequer me passa pela cabeça qualquer ideia de plágio. Quem sou eu para ser plagiado? Graças a Deus tenho noção da modestíssima escala da minha intervenção local, se quiserem, e, por enquanto, também não sou vítima de qualquer espécie de paranoia…

Parece, isso sim, ter acontecido que, embora à distância de seis anos, preocupados com os mesmos assuntos, inevitavelmente, nos tenhamos deparado com o mesmo desafio e, subsequentemente, desenvolvido um conjunto de ideias que não podiam deixar de ser coincidentes já que a tanto obriga a lucidez. Tão somente isto.

Mas, de facto, «a coisa», isto é, a coincidência é tão curiosa que não resisto a propor-vo-la como exercício de «análise comparativa. Nestes termos, começarei por transcrever o texto de ontem de Nuno Pacheco e, de seguida, o meu, já velhinho.

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I. Da “Nossa Clara Língua Majestosa”, Nuno Pacheco [Revista 2, ‘Público’, 16 de Março 2014]

No sempre recorrente debate sobre o acordo ortográfico (AO) há dois “argumentos” que começam a tornar-se insuportáveis: 1) “Ninguém é dono da língua”; 2) “A minha pátria é a língua portuguesa”, este citando Pessoa. Comecemos pelo segundo.

A citação parte do trecho 259 (belíssimo trecho, aliás) do Livro do Desassossego, que Pessoa escreveu como Bernardo Soares (a que se segue é do site Ciberdúvidas que, defendendo do AO, transcreve o trecho na ortografia usada originalmente por Pessoa): “As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. […] Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo.” E mais adiante: “Não chóro por nada que a vida traga ou leve. Há porém paginas de prosa que me teem feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noute em que, ainda creança, li pela primeira vez numa selecta o passo celebre de Vieira sobre o Rei Salomão. ‘Fabricou Salomão um palacio...’ E fui lendo, até ao fim, tremulo, confuso; depois rompi em lagrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquelle movimento hieratico da nossa clara lingua majestosa, aquelle exprimir das idéas nas palavras inevitaveis, correr de agua porque ha declive, aquelle assombro vocalico em que os sons são cores ideaes — tudo isso me toldou de instincto como uma grande emoção politica.” Finalmente, a repetida citação enquadrada no texto: “Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente. Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m’a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.”

O arbítrio nas regras escritas despreza os danos na fala

Àparte a provocação aos patriotas, a referência à língua como pátria é a defesa de um reduto de excelência. O ódio expresso de Pessoa não vai para quem escreve mal português, nem para quem não sabe sintaxe, nem sequer (alegrem-se, ó gentes do acordo!) para quem escreve em ortografia simplificada, vai sim contra a transformação de tudo isso em página: mal escrita, com sintaxe errada e ortografia “sem ípsilon” (ou seja, sem rigor nem elegância). Porque, diz Pessoa, “a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida.” Pois é neste “vista e ouvida” que se dividem as opiniões. É que muita da palavra “vista”, cumprindo-se o AO, hesita na forma de se fazer “ouvir”, já que, não tendo havido alterações no nosso sistema vocálico actual, o arbítrio nas regras escritas despreza os danos na fala. Citar Pessoa e insistir na “página mal escrita” é não apenas um contra-senso mas uma clara demonstração daquilo que, na essência, merecia o “ódio verdadeiro” do poeta.
E aqui chegamos ao outro ponto: “Ninguém é dono da língua”. Ora se ninguém é dono da língua para que servem então os paladinos do acordo, que se arvoram em únicos donos daquilo que não tem dono? Fizeram contestadíssimas regras, que nem eles respeitam convictamente, e dizem com desplante: não há donos. Deviam dizer: não há donos além de nós. Era mais honesto. Ou “onesto”, se preferirem. Mas deixem de nos enganar com malabarismos verbais. Porque se há “pagina mal escripta”, glosando a ortografia pessoana, é a do próprio acordo. Convinha lerem-no bem, outra vez.

II. ”O Desconcerto da citação”, João Cachado, [‘Jornal de Sintra, 25 de Abril de 2008]

Desta vez, foi o novo Ministro da Cultura [José António Pinto Ribeiro]. Não resistiu. Poucos dias depois da posse, aí estava ele, coitado, a cair na tentação de citar o que sempre produz o desejável e fácil efeito de impressionar, pela positiva tónica, um patriotismo generosamente expresso que não corre o risco de se conotar com qualquer ponta de nacionalismo de má memória saudosista.

Na realidade, para quem mais não domina que a descartável cartilha de umas citações, que, para o que der e vier, dá um jeitão ter à mão, deve ser difícil passar ao lado de Pessoa, em especial, da famosa tirada Minha Pátria é a língua portuguesa. No caso vertente,tratava-se da cerimónia em que o Ministro da Cultura do Brasil, Gilberto Gil, recebia o doutoramento honoris causa, por ocasião da sua recente visita a Portugal.

Aparentemente, tudo a propósito. Com efeito, na maior parte dos casos, aquela citação é especialmente adequada porque, com ela, se pretende dar a ideia de que a língua portuguesa é uma pátria comum – a um tempo virtual mas, de qualquer modo, bem real – de duzentos e não sei quantos milhões de falantes (e muito menos escreventes, porquanto, entre os espalhados pelos vários continentes, há um incrível contingente de analfabetos…) cidadãos proprietários desse inestimável património.

E, a fortiori, se o poeta – e que poeta!... – o afirmou, quem se atreve a contestá-lo? Ora bem, ninguém está aqui para o contestar mas, tão somente, para enquadrar as suas citadas palavras, e na presunção de considerar que são redutoramente aplicadas por quem, tão amiúde, a propósito e a despropósito, as cita e continua a citar. Eis-me, portanto, vindo a terreiro, com o pedido de que me acompanhem na tentativa de esclarecimento.

Pátria estética

As seis palavras em apreço constituem um inteiro período, uma ideia que, na sua inequívoca autonomia, não deixa de se articular com todo o parágrafo em que se insere, isto é, com as ideias precedentes e com as subsequentes. O melhor é mesmo transcrever todo o parágrafo:

“(…) Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. (…)”

Ora aqui está parte do contexto em que a famosa tirada não pode deixar de ser enquadrada, reinserida e reintegrada, para se articular, como imperioso se torna, com os discursos circunstantes. Se bem compreendem, a pátria de Pessoa (Bernardo Soares) nada tem a ver com um território de contornos definidos mas, isso sim, é o lugar geométrico de uma estética. De uma estética, repito. Nada de confusões!

Essa pátria é um lugar de tal modo definido, e exigente no contorno das suas fronteiras, que o poeta, recorrendo à sua máxima capacidade de expressivo convencimento do outro, não hesita em fazer uso de um discurso da maior virulência, sem papas na língua, para que dúvidas não restem quanto aos seus sentimentos. E então evidencia a revolta das entranhas, do artista que se ofende e sofre perante o produto defeituoso e degradado que não pode mas devia ser um artefacto.

Quando, nos discursos de circunstância, um qualquer oficiante de serviço se permite citar; quando em qualquer folheca ordinária, um ensaísta de segunda ou terceira classe se permite epigrafar o seu discurso com estas seis palavras do Livro do Desassossego,
pois não sei o que vos confesse em relação à revolta das minhas próprias tripas…

Ortografia como gente

Ultimamente, então, os defensores da necessidade de concretizar um acordo ortográfico, têm abusado, com o maior despudor – diria mesmo que têm manipulado – ultrajado a memória do poeta, no constante afã de trazer à colação a referida sentença. E, se assim o escrevo é porque não acredito que desconheçam o parágrafo imediatamente seguinte ao que acima transcrevi, que passo a reproduzir, para completa satisfação dos que, eventualmente, o desconheçam:

“(…) Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.”

Deixem-me adivinhar. Aqueles de vós que já não se lembrariam e os outros, que desconheciam de todo este remate, estão agora atónitos perante esta confissão do poeta que se roja, deleitado, rendido à grandeza, à magnificência da ortografia, a visível vertente da língua em que comunicamos.

Como não perceber a omissão dos tais oficiantes e pseudo ensaístas? Convém-lhes, naturalmente. Convém-lhes que permaneça obscura, na sombra e reserva das estantes e do silêncio, a opinião de um dos maiores ícones da Arte Literária em Língua Portuguesa de todos os tempos, o nosso querido Fernando, cuja opinião, como acabo de lembrar através da transcrição supra, sempre seria frontalmente contrária a revisões ortográficas que escondessem a herança linguística que usamos a toda a hora e momento.

Certeza sinfónica

Finalmente, não vos deixaria sem que ficassem descansados quanto aos precedentes textuais daquela torrente de indignação de Pessoa-Bernardo Soares. A razão remota e imediata é fruto de fortíssima impressão estética, suscitada pela leitura de uma página de Vieira. Melhor será que, novamente, demos voz ao poeta, transcrevendo, portanto, o parágrafo anterior àquele em que está plasmada a citação em questão:

”(…) Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta, o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio…» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombroso vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não – a saudade da infância, de que não tenho saudades; é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de já não poder ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica(…)”

O trecho de Vieira, que tanto emocionou o desassossegado, é pura melopeia, na realidade, é o melhor português de todos os tempos, vertido em páginas que só permanecem mortas, que não se fazem ouvir em toda a sua riqueza e grande certeza sinfónica, nas nossas casas, nas nossas escolas, em todos os locais onde seria suposto enriquecerem-nos, porque andamos todos muito preocupados com assuntos de lana caprina e, enfim, muito distraídos do que é essencial.

Logo que vos for possível, do Livro do Desassossego de Bernardo Soares*, leiam o texto completo do qual extraí os três parágrafos. E quando vos sugiro a completa leitura, apenas vos peço o tempo bastante para uma, só uma página, a tanto se reduz a peça de Arte que, saboreada à mesa onde o trecho de Vieira certamente não faltará, vos concederá, estou certo, um dos máximos gozos estéticos que se podem dar ao luxo.
Verão a razão que assiste quando me insurjo contra esses videirinhos das citações…

*
O próprio Fernando Pessoa, em carta a João Gaspar Simões, datada de 28 de Julho de 1932, considerava Bernardo Soares não um heterónimo mas «personalidade literária». A propósito, leia-se, com grande proveito, o esquecido texto Fernando Pessoa e o seu «semi-heterónimo» Bernardo Soares, precisamente de João Gaspar Simões, que abre o I volume de Fernando Pessoa, Obras em prosa, edição de Círculo de Leitores, Lisboa, 1987
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