[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sábado, 30 de março de 2013



 
Stabat Mater
outra imperdível 'obra pascal'

Todos os anos proponho o acesso a um Stabat Mater. Pergolesi, Vivaldi, Rossini, Palestrina, Haydn escreveram páginas estupendas para este texto tão especial. Não sei porque o Stabat Mater de Antonin Dvorak merece menos favor do público do que os dos precedentes. Não percebo, porque o considero belíssimo, perfeitamente à altura do de Pergolesi, por exemplo.

A melhor interpretação que conheço é esta, do ano passado, numa leitura de Nikolaus Harnoncourt , dirigindo o Arnold Schoenberg Choir e a Chamber Orchestra of Europe. Solistas são Luba Orgonášová, Elisabeth Kulman, Saimir Pirgu, Ruben Drole. Antes de acederem ao video, eis os textos em Latim e numa tradução para Portugês.


Stabat mater dolorosa                                                           
juxta Crucem lacrimosa,
dum pendebat Filius.

Cuius animam gementem,
contristatam et dolentem
pertransivit gladius.

O quam tristis et afflicta
fuit illa benedicta,
mater Unigeniti!

Quae moerebat et dolebat,
pia Mater, dum videbat
nati poenas inclyti.

Quis est homo qui non fleret,
matrem Christi si videret
in tanto supplicio?

Quis non posset contristari
Christi Matrem contemplari
dolentem cum Filio?

Pro peccatis suae gentis
vidit Iesum in tormentis,
et flagellis subditum.

Vidit suum dulcem Natum
moriendo desolatum,
dum emisit spiritum.

Eia, Mater, fons amoris
me sentire vim doloris
fac, ut tecum lugeam.

Fac, ut ardeat cor meum
in amando Christum Deum
ut sibi complaceam.

Sancta Mater, istud agas,
crucifixi fige plagas
cordi meo valide.

Tui Nati vulnerati,
tam dignati pro me pati,
poenas mecum divide.

Fac me tecum pie flere,
crucifixo condolere,
donec ego vixero.

Juxta Crucem tecum stare,
et me tibi sociare
in planctu desidero.

Virgo virginum praeclara,
mihi iam non sis amara,
fac me tecum plangere.

Fac, ut portem Christi mortem,
passionis fac consortem,
et plagas recolere.

Fac me plagis vulnerari,
fac me Cruce inebriari,
et cruore Filii.

Flammis ne urar succensus,
per te, Virgo, sim defensus
in die iudicii.

Christe, cum sit hinc exire,
da per Matrem me venire
ad palmam victoriae.

Quando corpus morietur,
fac, ut animae donetur
paradisi gloria. Amen.


De pé, a mãe dolorosa
junto da cruz, lacrimosa,
via o filho que pendia.

Na sua alma agoniada
enterrou-se a dura espada
de uma antiga profecia

Oh! Quão triste e quão aflita
entre todas, Mãe bendita,
que só tinha aquele Filho.

Quanta angústia não sentia,
Mãe piedosa quando via
as penas do Filho seu!

Quem não chora vendo isso:
contemplando a Mãe de Cristo
num suplício tão enorme?

Quem haverá que resista
se a Mãe assim se contrista
padecendo com seu Filho?

Por culpa de sua gente
Vira Jesus inocente
Ao flagelo submetido:

Vê agora o seu amado
pelo Pai abandonado,
entregando seu espírito.

Faze, ó Mãe, fonte de amor
que eu sinta o espinho da dor
para contigo chorar:

Faze arder meu coração
do Cristo Deus na paixão
para que o possa agradar.

Ó Santa Mãe dá-me isto,
trazer as chagas de Cristo
gravadas no coração:

Do teu filho que por mim
entrega-se a morte assim,
divide as penas comigo.

Oh! Dá-me enquanto viver
com Cristo compadecer
chorando sempre contigo.

Junto à cruz eu quero estar
quero o meu pranto juntar
Às lágrimas que derramas.

Virgem, que às virgens aclara,
não sejas comigo avara
dá-me contigo chorar.

Traga em mim do Cristo a morte,
da Paixão seja consorte,
suas chagas celebrando.

Por elas seja eu rasgado,
pela cruz inebriado,
pelo sangue de teu Filho!

No Julgamento consegue
que às chamas não seja entregue
quem por ti é defendido.

Quando do mundo eu partir
dai-me ó Cristo conseguir,
por vossa Mãe a vitória.

Quando meu corpo morrer
possa a alma merecer
do Reino Celeste, a glória. Amen.

Boa audição!

http://youtu.be/VJr5Gzaa2ig
 


Haydn,
o pathos
do Redentor
 

 Eis mais uma das obras de audição obrigatória durante o período do compreendido entre Quinta Feira Santa e o Domingo da Ressurreição. “Die Sieben letzte Wörte unseres Erlosers am Kreuz” [As Sete Últimas Palavras
do nosso Redentor na Cruz] é a peça que, na sequência da Paixão segundo São Mateus de JS Bach, hoje vos proponho. A interpretação está a cargo de Le Concert des Nations, sob a direcção de Jordi Savall.

Interessante considerar que a gravação, colhida entre 2 e 4 de Outubro de 2006, realizou-se na cidade de Cadiz, não na Catedral para a qual foi composta, mas na igreja de Santa Cueva. Trata-se da peça original, para orquestra, que o compositor escreveu antes de, dois anos mais tarde apresentar uma versão também vocal e, mais tarde, outra para quarteto de cordas. O vídeo é acompanhado de um bom enquadramento textual.

Eis a sequência das diferentes componentes:

1.- L'Introduzione. Maestoso ed Adagio.
2.- Sonata I. Largo - Pater dimitte illis, quia nesciunt quid faciunt!
3.- Sonata II. Grave e Cantabile - Hodie mecum eris in Paradiso!
4.- Sonata III. Grave - Mulier ecce filius tuus!
5.- Sonata IV. Largo - Deus meus, utquid dereliquisti me?
6.- Sonata V. Adagio - Sitio!
7.- Sonata VI. Lento - Consumatum est!
8.- Sonata VII. Largo - In Manus tuas Domine, commendo Spiritum meum!
9.- Il Terremoto. Presto con tutta la forza.

Boa audição!


http://youtu.be/ecNmELbr9x4
 


Il Poverello

Que bom poder e estar a viver este bom «alvoroço» - assim o tenho designado - com que nos tem desafiado o Papa Francisco. É ‘Il Povorello’, sim senhor, e já está a surpreender, a incomodar. Nalguns casos, mesmo a escandalizar.

O que ele nos está a dizer é que, de facto, ou estamos dispostos a acompanhá-lo nesta caminhada para uma Igreja pobre e para os pobres ou, então, se não esti
vermos dispostos a viver o Evangelho, no dia-a-dia, não passamos de uns católicos da treta.

Bem sei que damos a César o que é de César, pagamos os impostos, esperaríamos que não houvesse tanta necessidade de intervenção. Porém, ela é flagrante. ‘Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar’… São velhos sós, famílias jovens, crianças a viverem a cruel realidade da fome, na miséria, na dor.

Graças a Deus, há quem não pare, quem acuda, pouco se ralando com as bem pensantes razões de quem acha que a intervenção de que falo não passa de ‘caridadezinha’. De facto, assim pensando, esses até farão digestões bem mais calmas… Penso, pelo contrário que, nunca como agora, tanto se impôs acudir, no concreto.

Aliás, é também neste contexto, do «meter as mãos na massa», que se insere esta atitude inequívoca, bem legível na carta encíclica “Caritas in Veritate” de Bento XVI.

Actual e infelizmente, em Sintra, por exemplo, na minha paróquia, desde que o querido Padre Custódio Langane saíu, deixei de sentir este apelo. Por isso, fui à sua procura. A poucos quilómetros de distância, já no concelho de Mafra, em Igreja Nova, Cheleiros e Carvalhal, o Custódio está a fazer o tipo de trabalho que me interessa e que se impõe.

Estou com ele e com os irmãos acerca dos quais Jesus nos interpela, através de Mateus, 25,31-46:

“(…) Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo.’
(...) Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos?
E quando te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te? (…) 'Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.’ (…)”

Eles estão por todo o lado. Basta estar atento. E actuar de imediato, não esperar pela resposta institucional, porque há necessidades escandalosas. Somos Igreja pobre, para os pobres. 'Il poverello' em acção.
 
 

 
SNS, inestimável




[publicado no facebook em 29.03.2013]


A minha falta de engenho fica muito aquém da possibilidade de partilhar, com a qualidade que merecem, cenas absolutamente comoventes que tenho presenciado nestes dias de internamento.

Na realidade, não conseguiria descrever o carinho, dedicação, amor - não tenho medo da palavra - com que, por exemplo, na enfermaria onde estou internado, é tratado um senhor de oitenta e cinco an
os que carece de cuidados especiais.

Mdicos, enfermeiros, assistentes operacionais, apesar do imenso trabalho que não lhes concede um momento de descanso, noite e dia, profissionais que, a todos os doentes, concedem tudo o que estes têm direito, ainda conseguem ultrapassar a dimensão do humano, para assumirem a condição de verdadeiros anjos quando deparam com casos como o que está mesmo à minha frente, e que só não identifico pelo direito à privacidade a que todos os intervenientes têm direito.

Sei que episódios destes se multiplicam por todas as unidades de saúde por esse país fora. Por isso, o SNS conta com um património oculto, ilimitado, que não pode ser desrespeitado por decisões políticas que não estão à altura dos nobres desígnios que o animam.
Há muito tempo que, em directo, eu estava a precisar deste testemunho. Acreditem que, também por esta experiência, tão edificante, a minha Páscoa de católico, neste ano, enriqueceu de modo especialíssimo. Um abraço para todos e votos de Santa Páscoa.


Amadora-Sintra,
um caso sério

[publicado no facebook em 28.03.2013]


Na sequência da fatal escorregadela do passado sábado, acidente em consequência do qual parti o perónio da perna esquerda, tendo estado uns dias no Hospital de Portimão, quase a ser transferido para Cascais mas, finalmente, no Amadora-Sintra, eis que considero dever partilhar convosco aquilo que vai sucedendo, já que manifestaram tantas provas de apoio e interesse pelo meu estado, provas às quais não tenho podido corresponder devidamente.

Julgo ser com alguma propriedade que poderei escrever as impressões que se seguem acerca do Hospital Amadora-Sintra onde, actualmente, mais uma vez, estou internado. Desde a sua inauguração e até hoje, é aqui que, tanto eu como todos familiares mais próximos, adultos e crianças, temos acorrido quando algum problema de saúde impõe consultas de urgência, intervenções cirúrgicas, tratamentos mais ou menos prolongados. Ao longo destes anos, portanto, contam-se por muitas dezenas os episódios em que, invariavelmente, contámos com uma assistência de surpreendente qualidade.

Que não vos surpreenda o adjectivo ‘surpreendente’. Justifica-se o seu emprego na medida em que, geralmente, a fama de que disfruta o Hospital Fernando da Fonseca não coincide com esta opinião. E, se tal acontece, é porque, provavelmente, fruto do sobredimensionamento com que está confrontado em relação à proposta inicial de cobertura populacional, muitos utentes terão razões de queixa com tempos de espera que, em várias circunstâncias, consideram exagerados. Daí que, num país onde ainda grassa tanta iliteracia que tolda a capacidade de avaliação, é um pequeno passo até concluírem que tudo é menos positivo ou negativo. Enfim, todos sabemos o que a casa gasta…

De qualquer modo, o que a experiência me diz é que, no nosso caso, nunca a espera foi demasiada, em especial, perante emergências ou urgências flagrantes. Há muitos anos que deixei de ter seguro de saúde, privilegio o serviço público de saúde, lutarei pela inequívoca manutenção do Serviço Nacional de Saúde que o meu amigo António Arnault, em tão boa hora concebeu e apadrinhou, e é nesse contexto que, mais uma vez aqui estou.

Contrariedade

E, meu Deus, desta vez, aparentemente, até teria razões de queixa. Para ontem esteve marcada a minha operação. Passei o dia em jejum total e, pelas seis da tarde, levaram-me até à entrada do bloco operatório onde, naquela expectativa que conhecem todos os meus amigos que já passaram pela situação, permaneci duas horas e um quarto, altura em que um médico e uma enfermeira apareceram a comunicar que a intervenção não se concretizaria… Não é tudo. No período que atravessamos, avizinhando-se o feriado de Sexta Feira Santa e o fim de semana, se calhar só serei operado na próxima segunda-feira…

Certamente, imaginam a frustração. O que não imaginam é o cuidado com que a notícia me foi dada, como estavam penalizados aqueles dois profissionais, exaustos, incapazes de darem mais do que já tinham feito ao longo de tantas horas. Percebo perfeitamente que, em tais circunstâncias, quando se pode começar a pisar o tereno em que, depreendo eu, a própria segurança do doente e a qualidade da intervenção podem ser postas em causa, o melhor é mesmo o que me aconteceu.

Como também me disseram que haveria um remotíssima hipótese de resolver o meu caso ainda antes da Páscoa, vou permanecer nesta situação, aguardando que o melhor acabe por acontecer. Igualmente, na altura do adiamento, me disse o médico que o atraso da operação nada prejudica o sucesso da intervenção nem a posterior recuperação. Como não estou em posição de contrariar a opinião, confio. Exactamente, como sempre tenho confiado nesta boa gente do Hospital Amadora-Sintra.
 
 
 
 
[publicado no facebook em 25.03. 2013]
 
Eu bem não queria. No entanto, depois de algumas reacções, chego à conclusão de que tenho mesmo de explicar o que se passa com a súbita suspensão das mensagens no meu mural. Acontece que, na sequência de uma azarenta queda, no passado sábado, parti o perónio da perna esquerda, estando internado no Hospital de Portimão. Amanhã, serei transferido para o Hospital de Cascais para me submeter à indispensável operação.

Se tudo correr bem, sei que me espera um longo período de rec...
uperação. Por enquanto, como poderão calcular, não tenho tido disposição para estas lides fb. E, de facto, não me vejo de regresso antes do início da próxima semana, depois da Páscoa. Naturalmente, entre as muitas coisas que, temporariamente, terei de prescindir, avultam as caminhadas diárias e os concertos que tanta parte fazem da minha vida.

Enfim, como não poderia deixar de ser, vou aproveitar para me dedicar a algumas actividades propícias à situação, transformando em mais-valia o que não deixa de ser adversidade. Como acontece com toda a gente, tenho uma série de pendentes que serão contemplados por ficar mais limitado nas minhas deslocações.

Antes de, por uns dias, encerrar o estaminé, gostaria de vos propor “Ein deutches Requiem”, sem dúvida alguma, uma das peças de toda a grande Música que mais me tem impressionado ao longo da vida. Já dispensei o meu bilhete para o concerto desta semana em que a obra será interpretada pelo Coro e Orquestra Gulbenkian sob a direcção de Michel Corboz.

Em alternativa, eis uma das míticas gravações, sob a batuta de Otto Klemperer, dirigindo o Coro e a Orquestra Philharmonia London, incluindo as participações vocais de Dietrich Fischer-Dieskau e de Elisabeth Schwarzkopf.

Boa audição!

http://youtu.be/5j5Z_oxSz5w
 
 
 

Mitsuko Uchida,
«a» mozartiana
 
[transcrição do artigo publicado na edição de 22.03.2013 do ‘Jornal de Sintra’]

É com alguma emoção que, apenas por hoje, regresso a uma faceta da minha colaboração no Jornal de Sintra, relacionada com a vida musical, que me levou a subscrever, durante alguns anos, em ritmo semanal, imensas páginas de comentários críticos. Se bem se lembram, tal actividade também
incluiu, mesmo quando relacionada com a imprensa nacional, a existência dezenas de exclusivos de cobertura de eventos em Salzburg. Ora bem, um facto recente se me impôs como determinante para este breve retorno a tal actividade, ou seja, a presença entre nós da grande pianista Mitsuko Uchida.

Veio ela à Gulbenkian, no passado dia 18, interpretar e, com a Mahler Chamber Orchestra, dirigir, a partir do piano, os Concertos para Piano e Orquestra Nos. 17 e 23, respectivamente, KV. 453 em Sol Maior e KV. 503, em Dó Maior de Mozart. Desde já, fica o aviso de que, não entrando na análise dos detalhes da interpretação destas peças, me limitarei a fornecer algumas pistas afins do entendimento da prestação de artista tão singular.

Naturalmente, a expectativa anteriormente gerada foi confirmada perante o esgotado auditório que, em delírio, vibrou com tal privilégio. Foi uma grande noite, da melhor música que se pode fazer e ouvir em qualquer parte do mundo. Entre nós, de facto, só a Gulbenkian, no ano em que sua própria orquestra celebra 50 anos de existência, tem o poder económico para comemorar a efeméride apresentando uma temporada que, como sempre, está recheada de estrelas.

Mitsuko Uchida, demiurgo

Mitsuko Uchida. Na tão pessoal abordagem do universo mozartiano, ela opera, em termos platónicos, como o demiurgo, i.e., qual artesão divino, sem criar de facto a realidade, modelando e organizando a matéria preexistente através da imitação de modelos eternos e perfeitos. Pois bem, para que se entenda em que medida esta pianista é o demiurgo que proponho, preciso é que, previamente, nos entendamos quanto aos tratos de polé a que a obra de Mozart tem estado votada.

Ao contrário do que muita gente está convencida, Mozart é tudo menos aquele compositor bem disposto, que se ouve depois de um belo jantar. Tal convicção, entre outros abundantíssimos factores, não só resulta de um paradigma de ignorância, mas também se alia às nefastas consequências das deficientes leituras que a sua obra tem sido objecto. É que, ao longo dos tempos, mesmo os considerados grandes maestros e solistas o têm servido mal, muito mais do que razoavelmente ou bem… Em virtude de tais perversões, até em anos recentes, têm sido acrescentados, geral e nocivamente, muitos ademanes românticos, roubando substância essencial a grandes obras-primas, donde jamais deveria ter sido retirada.

Não é este anónimo escriba quem isto afirma, do alto da sua douta experiência de indefectível mozartiano, que ano após ano, corre para Salzburg, na mira de receber, sempre para partilhar, as oportunidades oferecidas por sucessivas edições da Mozartwoche, o mais prestigiado dos Festivais Mozart, assinado pela Fundação Internacional do Mozarteum. Não, quem isto mesmo tem afirmado, com a maior veemência, é o insuspeito e mundialmente conhecido Nikolaus Harnoncourt, agastado pelos malefícios que muitos músicos continuam a causar a Mozart. O anónimo João Cachado, esse, limita-se a estar atento, a estudar e a saber ouvir e a tentar transmitir.

Dualidade mozartiana

Mozart é aquilo que pode designar-se como um compositor dual, constantemente dialéctico. Em qualquer obra de sua autoria, na breve sucessão de compassos de um mesmo segmento, é capaz de fazer o aparentemente longo e distante percurso entre a alegria transbordante e a melancolia, a nostalgia, um quase desespero, para logo tudo se resolver, em saída mais positiva, à qual se seguem novos e outros mais contrastantes sinais. Ora bem, normalmente, enquanto esta avalanche de riqueza composicional acontece, a plateia continua a acenar benevolamente a cabeça, como se o compositor a não estivesse a interpelar e a desafiar para outros voos, da maior sofisticação e seriedade…

Sem entrar numa sempre controversa plataforma de comparações, neste caso, de pianistas, em que certos apreciadores defendem as suas damas e cavalheiros, entretendo-se em exercícios mais ou menos estéreis, não deixarei de considerar que Mitsuko Uchida é quem lidera o movimento de expurgação da obra de Mozart dos tais parasitas românticos a que aludi, ela que, igualmente, melhor terá compreendido e sabe transmitir as referidas características da dualidade mozartiana. E, portanto, recusando esse jogo de comparações, em especial com pianistas vivos, nada me custa integrá-la, isso sim, na dinastia dos grandes mozartianos em que pontifica a inesquecível romena Clara Haskill, falecida em 1960.

As primorosas interpretações de Uchida, no respeito escrupuloso de tudo o que, explícita e, também implicitamente, determinam as partituras de Mozart, é fruto do estudo permanente de todas as fontes históricas, que circunstanciaram a génese e o labor das composições, e que explicam afinidades com outras peças, a razão das opções mais ocultas do compositor ou deixam descobrir novidades absolutas, como os corajosos saltos no tempo que Mozart protagonizou. Trata-se de um imenso trabalho de investigação que dela faz uma das maiores conhecedoras do particular e difícil mundo mozartiano.

Técnica irrepreensível, espiritualidade, uma disciplina e auto-exigência que respira em cada gesto, eis os ingredientes do fenómeno que, pela primeira vez, ontem pisou o palco da Gulbenkian, cuja carreira acompanho há muitos anos como, aliás, as referências a esta mesma pianista demonstram, através das tais abundantes folhas de crítica musical que subscrevi e, em tempo, o Jornal de Sintra acolheu.

Uma última referência à Mahler Chamber Orchestra, que, há cinco anos, o jornal Le Monde considerou “a melhor do mundo”. Com ela, a também maestrina Mitsuko Uchida, concretiza um projecto de apresentação dos dois concertos referidos, explorando toda a sua global concepção de leitura e interpretação, bem como as mais subtis possibilidades de diálogo com os instrumentos que vão adquirindo protagonismo, em cumplicidades de excepcional recorte. Enfim, uma simbiose total. Sob a direcção do seu concertino, os naipes de cordas fizeram uma inolvidável apresentação do Divertimento para Cordas, SZ. 113 de Béla Bartók. Em suma, noite de glória!

[João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]
 
 
 
A Primavera
 
[publicado no facebook em 21.03.2013]

Este ano, celebrar a Primavera, passa pela formidável novidade que nos traz este Papa. Com ele, vivo o alvoroço deste tempo em que tudo desponta na natureza! Vivo a esperança, a renovação, a mudança para uma Igreja pobre ao serviço dos pobres, dos que mais carecem, dos fracos, dos oprimidos.

Eis o motete ‘Tu es pastor ovium’ [ès o pastor das ovelhas]de Giovanni Pierluigi da Palestrina, cantado no Ofertório da Missa de início do pontificado de Francisco. São as vozes dos Coros da Capela Sistina e do Instituto de Música Sacra.

Belíssimo! Que Primavera!

http://youtu.be/TBEGWrEbVlM
 
 
 
Aniversário especial
 
[publicado no facebook em 18 de Março de 2013]

Como toda a gente já me deu os parabéns, posso partilhar convosvo a certeza de que um especialíssimo presente de aniversário será o concerto desta noite na Gulbenkian.

Poder assistir, nesta data, a um evento em que dois concertos para piano de Mozart, serão interpretados por Mitsuko Uchida - que considero absolutamente inultrapassável no reportório que inclui toda a pianística mozartiana - é algo que, ironicamente, deve ter resultado de uma agenda de c
ompromissos em que o meu aniversário também foi considerado...

Iguais a mim, tem ela uma corte de milhares e milhares de indefectíveis por esse mundo fora. De vez em quando, acontecerá o privilégio que hoje me toca, ou seja, o de ser beneficiado com tal maravilha. Um amigo matemático já me tinha assegurado que, de acordo com o cálculo mais propício, esta era a única entre um milhão, trezentas e quatorze mil, novecentas e dezóito hipóteses...

Portanto, como não congratular-me? Pois bem, como não sou egoísta, o mais que posso fazer é continuar a partilhar convosco a arte de Mitsuko Uchida. Falta-me propor-vos a escuta do outro concerto que ela tocará hoje ao serão. Assim, aí têm o KV 503, acompanhada pela English Chamber Orchestra sob a direcção de Jeffrey Tate.

Boa audição!

http://youtu.be/M0HECZWbXAI

Mitsuko Uchida,
 
Gulbenkian, 7ª de Beethoven:
 a importância da editora Bärenreiter
 
[publicado no facebook em 16 de Março de 2013]


Se me dissessem que, para a tal ilha deserta, só poderia levar uma das nove sinfonias de Beethoven, logo pegaria na Sétima, em qualquer dos suportes, escrito, áudio ou audiovisual. Porém, muita atenção, com uma condição absolutamente determinante, ou seja, a de que obedecesse à edição que a casa Bärenreiter publicou entre os anos 1996 e 2000.

Foi, há precisamente dez anos, que acedi àquela que, para mim, era ...a primeira integral das sinfonias de Beethoven que seguia tal edição, respeitando-a escrupulosamente, ou seja, a da EMI, em que a Wiener Philharmoniker é dirigida por Sir Simon Rattle.
Cumpre esclarecer que se trata de «eine neue Urtext-Ausgabe», uma nova edição ‘Urtext ‘, original absoluto, que parte dos manuscritos essenciais, corrigidos por Beethoven, com indicações preciosas no que respeita os tempos, e que tinham sido considerados perdidos em 1862.

Através de um trabalho extraordinariamente meritório, a editora Bärenreiter promoveu uma autêntica epifania, acessível a todos quantos, até então, nas salas de concerto e em gravações, se tinham acostumado a ouvir as sinfonias a partir das edições da Breitkopf & Härtel, na qual se baseiam todas os designados registos «históricos». Bem pode afirmar-se que, com o advento da edição da Bärenreiter, um outro Beethoven sinfónico nos passou a estar acessível.

Quem lê música e compara determinadas páginas da 6ª e da 9ª sinfonias, publicadas por ambas as editoras, logo se apercebe das diferenças patentes e, se idêntico trabalho de comparação fizer o interessado melómano em relação ao resultado nas gravações, naturalmente, chegará à mesma conclusão, mesmo que não possa aceder às partituras.

É curioso que, na sua entrevista a Cristina Fernandes, hoje publicada no “Público, sem ter descido a este pormenor, o maestro Herbert Blomstedt – exactamente quem hoje dirige a Gustav Mahler Jugendorchester no concerto desta tarde na Gulbenkian, onde teremos a Sétima e o Concerto para Piano No. 4 – tenha aludido a esta questão absolutamente determinante.
Oxalá que, geralmente, muito mal preparado e informado, o público da Gulbenkian passe a ser sensível às diferenças.

Deixo-vos com uma gravação do famosíssimo ‘Allegretto’ da Sinfonia No. 7 em Lá Maior op. 92 de Beethoven, interpretado pela Staatspapelle Dresden, exactamente, sob a direcção de Blomstedt.

Boa audição!


http://youtu.be/c3LRg9E5cnc
 
 

sexta-feira, 15 de março de 2013


Sondagens & sinais

Se os militantes do PS ainda precisavam de mais algum argumento para colocarem definitivamente em causa a péssima liderança evidenciada por  António José Seguro e a sua equipa, então tenham em consideração os resultados do estudo da Universidade Católica hoje apresentado.
Quando o PSD, partido maioritário da coligação que desgoverna o Estado, apesar de tão má prestação, consegue subir em relação ao Partido Socialista, ficando apenas a três pontos, que esperam para tomarem a atitude que se impõe?
Mesmo depois da demonstração nas ruas do passado dia 2, o povo percebe que não há alternativa. Percebe que AJS e entourage não passam de farinha do mesmo saco que PPC e rapaziada. Com tais e tão degradados produtos, as jotas  bem demonstraram do que são capazes.

Se, de facto, a Lei Eleitoral não mudar, estes agentes da ignomínia e da indignidade, que se acoitam à cobertura de partidos desacreditados, vivendo uma perversa imagem da democracia, vão permanecer no «arco da governação», alternando as suas manifestas incompetências, fruto da indigência de uma preparação cultural, tão confrangedora que chega a doer.

Porém, ser consequente com este desígnio de alteração, rumo à «higienização» da vida democrática nacional, é algo de muito exigente, pressupondo um trabalho discreto que urge concretizar nas bases da vida cívica, nas comunidades onde os cidadãos vivem e se relacionam. Enquanto isto não puder acontecer – e  razões socioculturais fortíssimas, infelizmente, não são nada propícias – claro que é muito mais fácil ir para a rua.

A rua dá sinais. Mas só o trabalho cívico, a caminho da mudança que é imperioso forjar, só o trabalho, repito, resolve os sinais que a rua evidencia. Não há alternativa. E, quem não quiser ouvir que tudo o resto é folclore, só tem é de dar o exemplo, por palavras e obras...

 

 

Gulbenkian,
ontem, a cumprir programa

Em fim de ciclo, esperar-se-ia que, no contexto de trabalho com o Coro e Orquestra Gulbenkian, músicos que tão bem conhece, Lawrence Foster tivesse sido capaz de produzir um melhor resultado do que o de ontem à noite, em que foi manifesto  não conseguir alcançar objectivos de tão  manifesta qualidade como os evidenciados por sucessivos dirigentes convidados.
Como é sabido, durante o concerto, a atitude de qualquer maestro denuncia tudo o que esteve a montante daquele momento. Pois bem, é perfeitamente entendível que, durante os ensaios – é aí, muito mais do que perante o público que o maestro se revela – não houve ‘chama’, ou seja, percebe-se que Foster não pediu tudo o que a orquestra é capaz de produzir quando bem liderada.

Assim sendo, ontem apenas se cumpriu programa. E o programa bem merecia outra prestação. ‘Egmont’, terá sido a peça mais prejudicada, em especial no quarto entreacto, em que o ‘Largheto’ não atingiu, de modo algum, a serenidade que seria necessária para contrastar, não só com o subsequente ‘Andante agitato’, em que Clara tenta convencer o povo a resgatar Egmont, mas também com o epílogo.
Por outro lado, conhecendo bem a obra, discordo da alteração que o maestro introduziu, relativamente à sequência das secções e dos Lieder, fazendo saltar ‘Die Trommel  gerühret’ da primeira para quarta posição. Michaela Kaune, soprano, a dar conta do recado, Fernando Luís pouco eficaz como Narrador, cabendo-lhe uma responsabilidade não despicienda para o resultado que aponto.
Quanto à outra peça do concerto, ainda que não tenha o fôlego da posterior obra-prima que é a “Missa Solemnis”, a “Missa em Dó Maior” op. 86 é uma obra interessante que, durante toda a interpretação, merece o empenho que Foster apenas conseguiu evidenciar no ‘Agnus Dei’ e no ‘Dona nobis pacem’ em que, na verdade, tudo correu muito bem.

Portanto, durante o serão que, ontem de manhã, vos tinha anunciado, com uma ou outra excepção, à noite, apenas se cumpriu programa. É pouco. Vem aí Paul McCreesh, o novo maestro titular. Estou certo de que tudo vai melhorar 



Para me compensar e vos beneficiar, eis uma excelente interpretação da Missa em Dó Maior, 2ª parte. Atenção ao Agnus Dei.
Soprano: Katherine van Kampen
Meio-soprano: Ingeborg Danz
Tenor: Keith Lewis
Barítono: Michel Brodard
Coro: Gachinger Kantorei Stuttgart
Orquestra: Bach-Collegium Stuttgart

Maestro: Helmuth Rilling

Boa audição!

 




Francisco,
luz que brilha sobre o mundo

Há pouco mais de vinte e quatro horas, nada ou quase nada sabia acerca de Francisco, o Papa. Mas os sinais que tem dado, a palavra, a atitude prometem o que, por enquanto, não ouso confessar. Como crente católico, sempre tenho vivido na esperança do Evangelho espelhado no concreto dia, deste meu tempo, em que Jesus - Deus homem e Espírito Santo – Jesus o Ungido [tradução do grego Χριστός (Khristós)] me pede a Cruz como ponte para o amor.

A verdade do Evangelho, a crua simplicidade da mensagem do Ungido, a loucura mais radical e desafiante de todos os tempos, eis que, desde ontem, se insinua nos sinais de Francisco, o Papa. Sei que só os passos da Cruz fazem  O caminho, mas ele sentiu a importância de mo lembrar, desde logo, nas primeiras horas que partilha connosco.
Não deixa de ser curioso que, tal como ele, o Francisco cujo nome e sinais decidiu assumir, também não se chamava Francisco mas, isso sim, Giovanni di Pietro di Bernardone (Assis,5.7.1182 -3.10.1226), o cidadão rico e de vida fácil que, por obra e graça de Deus, se transformou num outro Cristo, num revolucionário, o santo, cujo exemplo de vida é essencial imagem de marca, para um pontificado em que se impõe viver o despojamento digno, de meios e de propósitos, a caminho do Homem que apenas aspira Ser.

De São Francisco, disse Dante Alighieri ter sido uma "luz que brilhou sobre o mundo". Luz que tal, jamais se apagou, já que é a luz do Ungido, ou seja, do próprio Khristós. Ontem na loggia da Catedral de São Pedro, antes de conceder a sua bênção apostólica ‘urbi et orbe’, Francisco, o Papa, actualizou essa luz, pediu e recebeu-a através da  bênção que, em nome do Ungido, o povo lhe transmitiu. Só então se sentiu autorizado – portanto, revestido da autoridade  bastante – para, depois, também ele poder devolver o gesto da Cruz.
Aos sinais de Francisco, que são inequívocos, aos simbólicos gestos e palavras destas horas, seguir-se-á, tão só, aquilo que todos nós, católicos, quisermos que se concretize. A Francisco, o Papa, que não é dono nem senhor da Igreja, os sinais, o gesto, a palavra. A nós, que, com ele, somos Igreja, a atitude evangélica, em cada dia, sem medo, sem vergonha do sinal da Cruz, nossa marca iniciática pelo Sacramento do Baptismo.

quarta-feira, 13 de março de 2013


Veni, Creator Spiritus

Ouvimo-lo ontem durante a cerimónia transmitida pelas televisões.

Trata-se de um hino que tem sido atribuído a Rabanus Maurus, séc. IX, de invocação ao Divino Espírito Santo, cantado em Canto  Gregoriano em ocasiões especialmente solenes, tais como a da entrada dos Cardeais na Capela Sistina para o Conclave da eleição de um novo Papa, consagração dos bispos, ordenação dos padres, na celebração do sacramento da Confirmação, benção de igrejas, celebração de sínodos ou conselhos, coroação de reis, bem como quando professam os membros das ordens religiosas. Eis o texto:

Veni, Creator Spíritus,
mentes tuórum visita,
imple supérna grátia,
quæ tu creásti péctora.

Qui díceris Paráclitus,
altíssimi donum Dei,
fons vivus, ignis, cáritas,
et spiritális únctio.

Tu septifórmis múnere,
dígitus paternæ déxteræ,
tu rite promíssum Patris,
sermóne ditans gúttura.

Accénde lumen sénsibus;
infunde amórem córdibus,
infírma nostri córporis
virtúte firmans pérpeti.

Hostem repéllas lóngius,
pacémque dones prótinus;
ductóre sic te prævio
vitemus omne noxium.

Per te sciámus da Patrem,
noscamus atque Filium;
teque utriúsque Spíritum
credamus omni témpore.

Deo Patri sit glória,
et Fillio, qui a mórtuis
surréxit, ac Paráclito,
in sæculórum sæcula. Amem.

Proposta de tradução para Português

Ó vinde, Espírito Criador,
as nossas almas visitai
e enchei os nossos corações
com vossos dons celestiais.

Vós sois chamado o Intercessor,
do Deus excelso o dom sem par,
a fonte viva, o fogo, o amor,
a unção divina e salutar.

Sois doador dos sete dons,
e sois poder na mão do Pai,
por ele prometido a nós,
por nós seus feitos proclamais.

A nossa mente iluminai,
os corações enchei de amor,
nossa fraqueza encorajai,
qual força eterna e protetor.

Nosso inimigo repeli,
e concedei-nos vossa paz;
se pela graça nos guiais,
o mal deixamos para trás.

Ao Pai e ao Filho Salvador
por vós possamos conhecer.
Que procedeis do seu amor
fazei-nos sempre firmes crer.

Glória seja dada ao Pai,
e ao Filho que da morte ressuscitou,
e ao Espírito Paráclito,
pelos séculos dos séculos. Amém.
 
*******************
 
Eis um documento audiovisual através do qual poderão aceder ao canto e à partitura do Veni Creator Spiritus

http://youtu.be/Kphky63gK5I

Como sabem, uma longa série de grandes compositores têm usado este hino. A título de exemplo, deixo-vos com o famoso primeiro andamento da Sinfonia No. 8 de Gustav Mahler, numa versão sob a direcção de Sir Simon Rattle, com a National Youth Orchestra of Great Britain, em gravação obtida durante os BBC Proms de 2002.

Boa audição!

http://youtu.be/-Wi1j-rpcEw


segunda-feira, 11 de março de 2013


 
Casino de Sintra,
Espólio de Bartolomeu Cid dos Santos

[publicado no Jornal de Sintra em 09.03.2013]
 

A notícia não poderia ser mais auspiciosa e de maior impacto cultural, não só no que a Sintra respeita mas também, como não é difícil verificar, a outros níveis mais abrangentes já que Bartolomeu Cid dos Santos – Barto, como era conhecido nos meios artísticos – é um nome do mais alto destaque nas artes plásticas contemporâneas.
O grande acontecimento data da passada segunda-feira, dia 4, quando, por unanimidade, a Câmara Municipal de Sintra deliberou submeter à aprovação da Assembleia Municipal o protocolo de cedência da Colecção que Maria Fernanda Oliveira Paixão dos Santos, viúva do artista, decidiu ceder ao Município de Sintra desde que, por este, sejam asseguradas as condições estabelecidas pelo protocolo celebrado entre as partes, com o objectivo da sua conservação e guarda, exposição e divulgação bem como e fácil acesso à mesma por parte de estudiosos e artistas.

Antes de circunstanciar alguns detalhes do referido Protocolo, gostaria de assinalar que, para a decisão de cedência desta colecção de Arte, contribuiu a especial vinculação a Sintra de Bartolomeu Cid dos Santos e de sua mulher, Maria Fernanda, lugar onde mantinham residência em Portugal. Como seu amigo e indefectível admirador da obra, fui testemunha da relação de perfeito deslumbramento de Bartolomeu por Sintra que, em simultâneo, também o levava a um empenhado interesse e preocupação pela preservação do património desta terra, em todas as vertentes.
Com a sua morte, sentidíssima por todos quantos tiveram o grande privilégio da amizade e companhia tão especiais, ficou-nos um vazio tão difícil de preencher que, de algum modo, esta notícia vem compensar, em especial, no alento que a todos determina no saber honrar quem nos cumulou com este fabuloso presente e quem tanto empenho revelou no sentido de que Sintra estivesse à altura da distinção.

Posso testemunhar que os grandes artífices desta autêntica façanha cultural foram o próprio Presidente da Câmara, Prof. Fernando Seara e o Vereador Dr. Pedro Ventura. Ao longo de muitos meses,  envolveram-se nas difíceis e sofisticadas negociações que, agora, culminaram num sucesso que tanto tem de fulgurante como determinante para o enriquecimento dos acervos artísticos de Sintra. De facto, há que considerar tratar-se, sem qualquer margem de dúvida, de um dos maiores acontecimentos culturais dos últimos anos nesta terra.
Porque assim é, passemos ao detalhe que, desde já, é possível partilhar. Em primeiro lugar, referirei que o espólio de Bartolomeu Cid dos Santos é um conjunto do maior interesse artístico cujo valor material, avaliado em cerca de quatro milhões e meio de Euros, é composto por cerca de 3.600 obras, entre gravuras, desenhos, aguarelas e guaches, incluindo uma componente fotográfica de inestimáveis atractivos, além de obras de grandes artistas amigos deste que foi um dos maiores gravadores, mesmo a nível mundial.

Maria Fernanda Paixão dos Santos, cuja atitude nunca será demais enaltecer, cede a Colecção ao Município de Sintra, durante oito anos, renováveis por períodos sucessivos de quatro anos, se nada obstar à continuação da vigência do Protocolo. Naturalmente, terá havido o maior cuidado no sentido de que, de parte a parte, tivessem ficado devidamente definidas mútuas obrigações. E, no que respeita ao Município, elas não são poucas e, de facto, muito expressivas.

Sintra obriga-se à conservação e à guarda, em condições adequadas, das obras que integrem ou venham a integrar a Colecção, a qual será disponibilizada num espaço com todas as indispensáveis condições e características de exposição ao público. Por outro lado, tal espaço ainda disporá de um arquivo que, concebido pelo próprio Bartolomeu, se designará Centro de Gravura e Desenho Bartolomeu dos Santos, onde as obras estarão gratuita e permanentemente acessíveis a estudiosos e artistas, nos termos de um adequado Regulamento Interno.
Muito importante para a concretização do acolhimento de espólio tão significativo, cuja notícia deverá suscitar as mais vivas, encomiásticas e entusiásticas reacções dos meios culturais, será o Conselho de Tutela da Colecção. É uma entidade cujo perfil e objectivos se justificam totalmente, incumbindo-lhe a escolha do Curador e zelar e acompanhar o cumprimento das condições e encargos que enquadram a Colecção de modo a não comprometer os seus objectivos.

Ainda mais um motivo de regozijo. Nos termos do Protocolo celebrado, o espólio será instalado no Casino de Sintra onde, brevemente, passará a ocupar a quase totalidade das instalações, apenas restando o espaço bastante para assegurar a montagem de exposições temporárias de reduzida escala. Na realidade, melhor não poderia ser a solução na medida em que, além de outros factores extraordinariamente propícios, também assim se capitaliza a experiência e a referência a um passado recente do Casino que, nos últimos anos, tem estado exclusivamente afecto à Arte Contemporânea.

Se tivermos em consideração que tanto o edifício do Centro Cultural Olga Cadaval como o do Casino de Sintra constituem um conjunto de espaços contíguos e articulados, ambos traçados pelo Arq. Norte Júnior – dispositivo cultural ímpar na área metropolitana de Lisboa – não podemos deixar de prever o benefício mútuo e comum e as imensas vantagens para o público que, assim, também poderá aceder à Colecção em horários que coincidam com os espectáculos no CCOC. Não esqueçamos que, para todos os efeitos, é a empresa municipal SintraQuorum a mesma e única entidade à qual compete a gestão deste conjunto, circunstância que tudo facilita.

Com este tão significativo benefício, Sintra adquire e vai passar a disponibilizar o fruto desta mais-valia de incontornável referência da Arte Contemporânea. É altura de nos prepararmos para festejar condignamente tão grande júbilo. Estamos todos de parabéns e, muito naturalmente, de parabéns também estão Maria Fernanda dos Santos, por este testemunho de tão grande apreço por Sintra, bem como o Presidente Fernando Seara e o Vereador Pedro Ventura que, discretamente, acabam de prestar serviço tão especial à comunidade.

PS: Gostaria de recomendar o documentário Bartolomeu Cis dos santos - Por Terras Devastadas, acerca deste meu amigo (1931-2008), um dos grandes artistas do século XX, gravador, pintor, em cujo mundo crepuscular do fim do Império, ele que criou as primeiras metáforas contra o Colonialismo Português. De acordo com a sinopse do filme “(…) com renovada vitalidade, se insurgiu contra a Nova Ordem Mundial. Sabendo, com Eliot, que "tempo passado e tempo futuro estão ambos presentes no tempo presente". Um retrato cúmplice do artista assinado por Jorge Silva Melo.”


 [João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]

 


Caritas in Veritatem,
imperdível

[publicado no facebook em 09.03.2013]


No suplemento ‘Economia’ do semanário ‘Expresso’ do dia 2 de Março, o Prof. João Duque faz uma das mais encomiásticas referências que tenho lido sobre a encíclica “Caritas in Veritatem” de SS o Papa Emérito Bento XVI.

Não me surpreende que o tenha feito já que, como economista e académico, não poderia ignorar o texto e, dele tendo tido conhecimento, só poderia rebder-se à clarividência das
considerações ali expressas, por exemplo, acerca da entidade que a empresa é no mundo capitalista, à deontologia dos gestores, às relações entre os «mercados» e o Estado Democrático de Direito.

Recomendo vivamente a leitura daquela tão sintética como lúcida coluna de João Duque. A propósito, aqueles que acompanham os textos que vou partilhando, sabem como sou suspeito de parcialidade em relação à carta encíclica em questão. Desde que veio a público em 2009, é um texto que tenho constantemente presente e que venho recomendando inequivocamente.

Por me parecer que ainda não perdeu actualidade um dos meus escritos, datado de 12 de Maio de 2010*, eis que sugiro a leitura na expectativa de que, na medida do possível, aqueles que ainda o não fizeram, acedam à “Caritas in Veritatem”. Surpreendam-se!


*aceder ao arquivo

 






 
 
 
Gulbenkian,
novamente Octeto de Schubert
 
[publicado em 07.03.2013]
 
Cheguei há pouco do concerto desta tarde na Gulbenkian que, tal como aqui anunciei, incluia o famoso Octeto em Dó Maior, D. 803" de Schubert.

Se volto a considerações de enquadramento desta obra tal se deve a ter encontrado, nada mais nad...a menos, do que quatro companheiros que tinham lido as minhas notas desta manhã, esperando encontrar no programa de sala da Gulbenkian algumas referências às peças com as quais articulei a minha análise de alguns dos temas constantes de dois dos seis andamentos do Octeto.

Pois a verdade é que o referido programa nada contém que pudesse ter sossegado esses amigos que, infelizmente, também nunca tinham ouvido falar ou lido fosse o que fosse acerca do Singspiel "Die Freunden von Salamanka". Como tive oportunidade de lhes dizer pessoalment, eu lamento imenso o seu desconhecimento mas o Singspiel existe. É muito raro representar-se mas, por exemplo, na Schubertiade, encontra-se matéria afim.

E, a prová-lo, aqui está a gravação que vos proponho. É a melhor que poderia partilhar, datada de 1978, com um fanbuloso elenco de cantores, a saber

Edith Mathis -soprano
Christine Weidinger -soprano
Thomas Moser -tenor
Hermann Prey -barítono
Robert Holl -baixo barítono
Kurt Rydl -baixo

e Orquestra Sinfónica da Rádio da Áustria sob a direcção de Theodor Guschlbauer. Como, por vezes, sucede, esta gravação tem os tempos todos assinalados. Eis o detalhe:


I. Abertura 00:00

Acto I

II. Die Sonne zieht in goldnen Strahlen 05:55
III. Man ist so glucklich und so frei 08:07
IV. Morgen, wenn des hahnes Ruf erschallt 09:49
V. Einsam schleich`ich durch die Zimmer 13:00
VI. Lebensmut un d frische Kuhlung 18:11
VII. Freund, wie wird die Sache enden 23:32
VIII. Mild senkt sich der Abend nieder 27:52

Acto II

IX. Lasst nur alles leichtfertige Wesen 38:08
X. Guerilla zieht durch Feld und Wald 42:41
XI. Ein wackres Tier, dass musst ihr sagen 44:14
XII. Gelagert untern hellen Dach 46:53
XIII. Wo ich weile, wo ich gehe 49:47
XIV. Von tausend Schlangenbissen 52:22
XV. Es murmeln die Quellen 56:20
XVI. Nichte, Don Diego da 58:17
XVII. Trauring geht der Geliebe von dannen 01:01:55
XVIII. Gnad`ge Frau, ich hab' 1.05.01

Quanto ao enredo, dispensem-me desse pormenor já que facilmente o encontrarão. Enfim, estou a concluir o cumprimento da promessa feita antes de se iniciar o concerto desta tarde. Aqui têm a peça que tanto mistério causou... Assim fica satisfeita a curiosidade de todos.

Boa audição!

http://youtu.be/CIM8K0vrWDY


Salzburg,
visitas presidenciais


[publicado no facebook em 07.03.2013]


O Dr. Ivo Josipović, Presidente da República da Croácia, de visita à Fundação Internacional do Mozarteum de Salzburg, sentou-se ao pianoforte que pertenceu a Mozart - instalado na Tanzmeistersaal, a seguda casa onde o compositor viveu com a família, naquela que é hoje a Makart Platz - e tocou duas peças.

Esta cena lembrou-me que, em visita oficial, de passagem por Salzburg, Aníbal Cavaco Silva nada pôde tocar porque, ao que consta, apenas toca campainhas de porta. Maria Cavaco Silva, «mais musica»l, junto à muralha da fortaleza, agarrou-se ao braço da mulher do Presidente da Republica da Áustria e, coitada, cantou o que mais a propósito lhe sugeriu o lugar. Não, nem sequer o tímido balbucio de alguma conhecida ária de Mozart mas um dos temas de "Música no Coração"...

Uma das minhas amigas do Mozarteum, logo nesse dia me telefonou a contar a cena que, ainda hoje, recorda como uma das mais caricatas a que assistiu em ocasiões congéneres. A representação dos países, ao mais alto nível, por vezes tem altos, como o caso do PR da Croácia e, «noutras oportunidades», de facto, tem baixos... 
 

 

 
 
 
Gulbenkian, concerto com
solistas da Gustav Mahler Jugendorchester
 
[publicado no facebook em 07.03.2013]

Do concerto desta tarde na Gulbenkian, pelos Solistas da Gustav Mahler Jugendorchester, cujo programa compreende os “Corais para metais” de J.S. Bach, a “Serenata em Dó m
enor KV 388 ‘Nachtmusik’”, de Mozart e o “Octeto em Fá Maior, D. 803” de Schubert – gostaria de partilhar convosco algumas notas, precisamente, acerca da última das obras referidas.

Trata-se de uma das mais célebres peças da música de câmara de todos os tempos que, nos seus seis andamentos, é algo longa mas, como acontece com todas as obras máximas, a noção do tempo físico dilui-se no próprio tempo da interpretação.

Obra de 1824, para clarinete, fagote, trompa, dois violinos, viola, violoncelo e contrabaixo, é indissociável do “Septeto” de Beethoven. Na realidade, Schubert compôs o Octeto em satisfação de um pedido de Troyer que, especificamente, lhe sugeria algo de semelhante. Acontece, inclusive, que alguns dos músicos, que tinham estreado a obra de Beethoven, também intervieram na primeira apresentação desta, no Palácio do Arquiduque Rudolfo, a mesma personagem a quem, por exemplo, Beethoven dedicou o famoso “Trio Arquiduque”.

A grelha dos andamentos - I. Adagio-allegro,II. Adagio, III.Allegro vivace-trio, IV. Andante con variazioni
V. Menuetto, allegretto - também é análoga à do Septeto bem como o são algumas das relações de tonalidade entre os andamentos e o tom principal, ou seja Mi bemol para o Septeto e Fá Maior do Octeto.

No que aos temas poderíamos salientar, de considerar que o do primeiro andamento tem origem no Lied de Schubert ‘Der Wanderer’ e que as variações do quarto se baseiam num tema do Singspiel ‘Die Freunde von Salamanka’ do mesmo autor.

Não tenho a menor dúvida de que teremos mais um excelente momento de música no final desta tarde e sei-o porque se trata de uma formação do mais alto nível, que tenho vindo a acompanhar, desde o princípio da sua constituição, projecto de Claudio Abbado.

Até mais logo, deixo-vos com uma versão que tem como intérpretes os solistas da Orquestra Filarmónica de Berlin: Saschko Gawriloff & Rainer Mehne, violinos, Wilfried Strehle, viola, Peter Steiner, violoncello, Rainer Zepperitz,contrabaixo, Gerd Seifert, trompa,Hans Lemke, fagote, Alois Brandhofer, clarinete.

Boa audição!


http://youtu.be/ZwLry7SV8I4
 

terça-feira, 5 de março de 2013



Tellemann,
hoje na Gulbenkian

[publicado no facebook em 04.03.2013]


Uma autêntica festa, a que nos espera esta noite no Grande Auditório. No Ciclo de Música Antiga desta excepcional temporada, eis que Ton Koopman, dirigindo Amsterdam Baroque Orchestra and Choir, nos privilegiará com um programa belíssimo do qual contam: 'Selig, sind dise Toten', 'Das Leben ist ein Rauch, ein Schaum' e 'Die Donnerode´.

A última das obras referidas, é a Cantata TWV 6:3, inspirada num acontecimento que causou a maior impressão em toda
a Europa, o horrível terramoto do primeiro de Novembro de 1755. A peça, em duas partes, foi composta de imediatoi e estreada em 11 de Março de 1756, em St. Jakobi, Hamburg. Dela vos proponho uma estupenda interpretação que conta com:

Soprano: Barbara Schlick
Contraltolto: Axel Köhler
Tenor: Wilfried Jochens
Barítono: Hans-Georg Wimmer
Barítono: Stephan Schreckenberger

Coro: Rheinische Kantorei
Orquestra: Das Kleine Konzert
Maestro: Hermann Max

Boa audição!
 


No cói de Campo Maior...

[publicado no facebook em 03.03.2013


António José Seguro deve ter feito a maior argolada política dos últimos tempos. Enquanto um milhão e meio de portugueses protestava nas ruas de várias cidades de Portugal, decidiu reunir com trinta ou quarenta militantes em Campo Maior, praça forte de Nabeiro, grande patrocinador e financiador do PS... Mas porquê? Para quê?

Já se sabia sabia «o que a casa gasta» no ma
ior partido da oposição e, quanto a alternativa, já há muito que a conversa acabou.

O que ainda se desconhecia era a dimensão da falta de gabarito de Seguro. Foi preciso este caricato episódio para aquilatar até que ponto pode chegar a falta de perspicácia de um político que aspira ser Primeiro Ministro de Portugal e não hesita em se refugiar num longínquo cói quase na raia de Espanha...

Tal como Passos Coelho, Seguro não tem mesmo qualquer hipótese de remédio. Aquele passado comum nas 'jotas' parece ter-lhes enquinado o futuro. O pior é que nada mais têm a oferecer ao povo do que uma comum e imensa falta de preparação.

E, à semelhança do que acontece com uma imensa maioria de portugueses, nem um nem o outro ainda perceberam que está em curso uma radical mudança no modo de viver a política, tanto entre nós como por essa Europa fora. Fazem parte de uma classe política esgotada, desajeitada e impreparada perante cidadãos que lhes vão dando sinais que não sabem interpretar...

Anda por aí, desenquadrado, sem a liderança que se impõe, um imenso capital de esperança neste povo causticado, empobrecido e que, ainda não vergado, canta uma dignidade e nobreza que, por enquanto, o impedem de partir montras ou incendiar automóveis. Ontem, 'Acordai' de Gomes Ferreira/Lopes Graça, hoje 'Grândola' de Zeca Afonso.

Mas muitos dos que foram para a rua, cheios de histórias recentes de renúncias, de esbulhos e de desrespeitos de toda a ordem, também não identificam ou entendem muito mal as linhas que fizeram cozer os passos que deram por essas ruas do país. Em Setembro espelhavam esperança nos rostos, agora uma raiva triste feita canção.